quarta-feira, 18 de outubro de 2017

A vida social por um fio: o empreendedorismo criminal


Aconteceu essa manhã. Quando dobrei na Passagem 3 de Outubro, saindo da Dr. Freitas, voltando da minha caminhada matinal, a moto parou a meu lado. A mão do carona foi direto para a cintura, bem na direção do meu olhar. Sacou a arma enquanto descia do veículo e mandou eu “ficar na minha”. O impulso de um milésimo de segundo me fez procurar um rota de fuga no mesmo instante em que a moto parou e vi a cena. Já sabia que era um assalto. Mas ao ver que eu titubeava, o bandido reforçou: “deita no chão! Eu vou te matar”. Enquanto aproximava a arma da minha cabeça, que começava a me preparar psicologicamente para morrer, ele continuou: “deixa ver se tu não é policial.” Eu estava ajoelhado, olhando para o chão. Depois de me revistar e ver que não tinha mais nada além do celular, ele pegou o aparelho, montou na moto e foi embora. Um dos donos do restaurante popular em cuja frente ocorreu a cena, saiu logo depois e me olhou com aquele ar misto de pena e solidariedade. “Impressionante, rapaz, como esses caras humilham a gente”, disse ele.

Divisão de Repressão a Roubos e Furtos, na Sacramenta, Belém-PA
Cheguei em casa, poucos metros adiante, e vi que o aparelho ainda estava ligado porque o whatsapp web (recurso que permite mandar e enviar mensagens pelo computador conectado ao aplicativo) estava ligado. Por uma hora ainda pude entrar em contato com as pessoas que eu conversava para alertá-las sobre o assalto. Achei que eles poderiam estar monitorando meus contatos, mas acabei pensando mesmo é que eles desligaram o aparelho somente depois de terminar a “ronda” matinal.

Já fui assaltado muitas vezes. Morando na periferia de Belém, já presenciei cenas que nunca ousei relatar no Facebook (não é lugar de expor suas fragilidades, não é mesmo?) mas segui em frente, cuidando de mim e dos meus. Mas juro que naquele momento em que me ajoelhei, eu me preparei para morrer. Quando você convive com a violência, você acaba se preparando para situações como essa. Depois que você evita certos lugares e certas práticas, em certos horários etc etc; e, ainda assim, coisas como essa acontecem às 7h30 da manhã, em via pública, diante das pessoas, você percebe que além desses cuidados (para evitar a violência) você também tem que estar preparado para morrer. A morte torna-se banal e não é para o outro é para você inclusive.

Ok. Mas você não morreu! Você dá graças a Deus por isso, mas também lhe convém continuar na vida tentando achar novas soluções para um problema crescente, presente, vivo. Ou vamos desistir de viver. Não! Vamos morrer lutando, tentando entender.

Hoje em dia odeio textão de facebook. Não porque não goste de ler. Acho que, na maior parte das vezes, é hipocrisia, falta do que fazer e não dá em nada mesmo. Fazia. Parei. Até mesmo meu blog está subutilizado pelo descrédito em quem me ensinou a escrever e analisar fatos cotidianos. Escrevo projetos, cartas, esboços de livros e pesquisas que, acredito, possam mudar de fato a minha vida e a vida das pessoas que amo. Mas a gente não pode passar por uma experiência dessas sem refletir e sem compartilhar com um grupo maior de pessoas, urgentemente, porque isso é o nosso cotidiano. O nosso lugar do comum. O espaço da nossa convivência.

Quando fui assaltado há dois anos na Praça Dorothy Stang, à noite, vestindo roupa social, em companhia de uma namorada, me disseram que eu não devia estar ali. Sei que não é justo dizer que a culpa é da vítima, afirmar que devem existir lugares públicos na cidade que você não deve frequentar. Não aceito essa proposição. Paguei o preço de arriscar viver em sociedade, encarando uma população ainda mais pobre que eu no nosso lugar comum. Mas me rendi aos fatos e às circunstâncias. Sei que a vida real exige cuidados práticos. Fui assaltado ao lado de um PM Box. Nunca mais dei esse “mole”. Meu novo celular durou quase dois anos sem ser roubado. Um recorde.

 Mas, entre todas as outras experiências que vivi vendo a violência da periferia de Belém, nenhuma me deu tanto medo quanto esta última. Como eu disse, a convivência com a violência lhe cria uma casca. Vida cotidiana, morte cotidiana. Sempre foi pior e mais revoltante para mim a violência institucional de agentes públicos, de colegas de profissão e trabalho, de pessoas amadas que lhe traem não apenas a confiança, mas te violentam mesmo (escrevamos isso com muito cuidado e deixemos em suspenso, por enquanto). O que quero dizer é que não dá para ficar escrevendo textão sobre corrupção do congresso ou do executivo, é preciso analisar a degradação cotidiana, que está ao nosso lado, dentro de casa, no trabalho, na nossa rua, dentro de nós. Ou você acha que chegamos a esse ponto no Brasil de hoje graças aos “outros” e não graças a um conjunto de valores comuns? “Eles” e “nós”. Certo. Entendo. Mas por que falamos “deles” lá e não falamos deles aqui?

Ok, estamos falando da bandidagem, daqueles que não têm jeito de serem considerados “comuns” a quem é cidadão “de bem” (observem atentamente estas aspas) e vive honestamente de seu trabalho. Você, por um momento, quando tenta cumprir suas obrigações junto ao Estado, pagar seus impostos, suas taxas, suas multas, mesmo vendo blitzen diárias no trânsito e vendo os órgãos arrecadando uma dinheirama sem que isso se reverta em absolutamente nada para o cidadão “de bem”, perde o controle, revolta-se. Como não se revoltar? E como ser tão passivo?! De um lado a bandidagem te humilhando e te roubando, de outro lado o poder público te arrochando os bolsos, e te humilhando também. Por um momento você entende perfeitamente os seguidores do Bolsonaro, que sabe como poucos catalisar essa revolta “comum”.

Mas, novamente, vamos tentar refletir. Pense em dois homens brancos talvez entre 25 e 35 anos, em plena idade produtiva, portanto, dirigindo uma moto às 7h da manhã, procurando um “trouxa” como eu que decidiu sair para caminhar de manhã levando o celular na mão. Veja bem, são homens brancos, de porte físico, de fala articulada. Aquele é o “trabalho” deles. Se eles não passaram a noite “cheirados” e decidiram “meter o bicho” para descolar um troco e manter a farra no dia seguinte, eles seriam outra coisa. Que coisa? Essa primeira análise é a análise, penso eu, que a classe média “bolsonariana” faria a princípio. A análise do “pobre preto e desfavorecido”, que seria a análise da classe média autodenominada “de esquerda” já caiu por terra no início desse relato.

Quem seriam essas pessoas, então? Integrantes da milícia armada que atua impune nas ruas de Belém? A interrogação que me fizeram sobre eu ser policial enfraquece essa versão. O revólver usado no roubo também. Era um 38 velho. Já vi a milícia atuando. São pessoas que assumem postura de atiradores profissionais quando correm armados. Eu vi essa cena na rua de noite com mais quatro testemunhas dentro do carro. Eram homens em idade produtiva de classe média. Sim, com a coragem de ir para a rua roubar e talvez matar para garantir um padrão de vida, um “sustento” qualquer que seja ele. Pela minha experiência (além de ter sido assaltado muitas vezes, de conviver no mesmo espaço que marginais de diferentes classes sociais, eu fui repórter, fiz até curso de detive e cobri a polícia por um tempo), eram pessoas de classe média e não estavam drogadas. São bandidos. Mas, um tipo entre tantos tipos de bandidos a solta.

Apesar do medo de morrer na hora em que o assaltante disse que me mataria, pude constatar (estando vivo agora) que eles, enfim, não me matariam mesmo. Ao menos não me matariam se eu não tivesse uma arma. Depois do susto parece o óbvio ululante, mas me diz que foram mesmo é oportunistas, aproveitaram meu descuido e que agiram de forma consciente, em uma área que aparentava segurança para a ação. Uma ação planejada. Talvez tivessem me seguido por uma ou mais quadras antes de agir.

Você fica pensando nessas pessoas acordando cedo, se arrumando e indo para a rua roubar às 7h da manhã quando o cidadão sai para o trabalho ou volta de sua caminhada matinal. Quando você pensa neles como pessoas comuns, você os imagina planejando a ação e circulando com o celular ligado, do jeito que foi tomado da vítima, por mais uma hora, enquanto fazem outras vítimas. Talvez eles tivessem até uma meta de “arrecadação”. Digamos que eles roubem 10 celulares por semana. Digamos que consigam vender estes 10 celulares por 300 reais. Faturam 3.000 reais em uma semana. Algo melhor do que viver sem renda nenhuma em situação humilhante diante da roubalheira nacional. São empreendedores do roubo! Fico imaginando essas pessoas discutindo a votação no senado sobre a permanência do senador Aécio Neves ou o julgamento de Lula. Some isso a todas as notícias de roubo e ações violentas que ocorrem no país e você tem um quadro que causa pânico e cegueira social nas pessoas comuns, mas onde é claro o sentido de degradação generalizado para quem tentar encontrar soluções fáceis. Como os “bolsonarianos”. A mim, fica claro que temos que dar respostas no mundo da vida, na mudança e reorganização da sociedade. Quem sai de casa para roubar como se fosse um trabalho, está sujeito a matar e morrer. A sociedade também estará preparada para isso, como eu me preparei para morrer. Ontem mesmo um vídeo no whatsapp mostrava uma parte da população agredindo um bandido dentro de uma casa em que ele entrou. Isso porque a essas pessoas fica cada vez mais claro que não há justiça senão pelas próprias mãos. Hão de se organizar também como em milícias, quem sabe?

        A mim, resta decidir se presto queixa na polícia ou não. Afinal, fui assaltado a pouco mais de 100 metros da Divisão de Repressão a Furtos e Roubos (DRFR) da Polícia Civil, onde, como se pode ver na foto, carros e mais carros se acumulam sobre a calçada e a ciclovia sem que os colegas de blitzen do Detran façam qualquer coisa. A certeza da impunidade é um incentivo ao empreendedorismo criminal emergente.  
         
         Quanto à nossa vida, preparamo-nos para morrer pensando que é o único destino certo. Vida cotidiana, morte cotidiana. O foda mesmo é pensar no fim da vida social como um ambiente em que deve florescer aquilo que aprendemos chamar de “humanidade”.

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