terça-feira, 31 de outubro de 2017

Gêneros musicais do Pará: Guitarradas




Dando sequência ao projeto Cenas Musicais de Belém do Pará vou ministrar aula/palestra hoje no Centur sobre a Cena das Guitarradas. Quase tão cult e pop quanto o carimbó, as guitarradas (ou "a guitarrada") são um gênero de musica instrumental paraense nascido com Mestre Vieira e mantido por uma sequência de “guitar heroes” como Aldo Sena, Solano, Chimbinha, Pio Lobato, Lucas Estrela e outros.  Neste “capítulo”, vamos discutir cena cultural também como conceito, e nativismo paraense como soft power, mas principalmente o modo como os gêneros musicais se formam e se estabelecem. Vamos apresentar questões estéticas e econômicas que permeiam essa cena musical, baseado em observações minhas e de autores como Pio Lobato, Fabio Castro e Jeder Janotti Jr. Vai ser às 14h no auditório da Fonoteca Satyro de Melo, no terceiro andar do Centur. Entrada franca e eu espero você por lá. 

Após a palestra, vou reencontrar um velho amigo, com quem toquei na época do Coletivo Rádio Cipó: o roqueiro Mestre Laurentino, que fará uma apresentação musical no mesmo auditório acompanha de MG Calibre e Henrique Senna. Imperdível. 
  

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Convidado no Linha de Tiro, de Carlos Mendes

      Na próxima quinta-feira, dia 26, vou visitar o amigo Carlos Mendes. Jornalista, correspondente do Estado de São Paulo e d'O Correio, de Carajás, blogueiro e ferrenho militante do jornalismo como vocação. Mendes estreou na semana passada o programa Linha de Tiro, transmitido pelo Facebook e postado nas redes sociais, em que discute segurança pública, política, saúde, educação e meio ambiente, entre outros temas. O convite surgiu depois do assalto que relatei neste blog no dia 18 passado. Participa do programa também o historiador Elson Monteiro. É uma boa oportunidade de discutir nossos problemas e abrir um debate mais do que necessário. Por isso colaboro com todo carinho e entusiamo com essa iniciativa. Convido a todos a assistirem à transmissão ao vivo pelo perfil do Ver-O-Fato no Facebook, quinta às 20h. Segue o endereço do perfil:


Abaixo a chamada gravada por Mendes:

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Mudança de hábito: duas posturas diante do Estado

Hoje de manhã decidi ir caminhar novamente depois do assalto do dia 18. Em vez de sair de casa andando, com o celular na mão, peguei o velho celtinha prata e fui de carro até a Praça Eduardo Angelim, na Pedreira, e de lá fui caminhando pela Antonio Everdosa. No meio do caminho encontrei o Nonato. Ele estava capinando o canteiro central da rua. Em pleno sol, no dia do feriado dos comerciários, ele já tinha capinado uns 30 metros. Quando passei, falei: “A Prefeitura não trabalha, não é mesmo, meu amigo?” Ele respondeu de bate pronto: “A gente que tem que fazer o trabalho do Zenada”. Fazendo menção ao nome do prefeito Zenaldo Coutinho.

Raimundo Nonato dos Santos, 53 anos, comerciária faz o trabalho da PMB.


Depois da caminhada, peguei o celular no carro e fui entrevistar Raimundo Nonato do Santos, 53, comerciário que trabalha há 33 anos na loja Y. Yamada. Nonato contou que todo ano, antes do Círio, a Prefeitura costuma passar para “dar aquela maquiada na cidade”. Mas este nem isso ela fez. Nonato decidiu então ele mesmo por a mão na massa. Disse que fazia aquilo em benefício do pai, que mora em frente ao trecho do canteiro central em que ele trabalhava e dos vizinhos. Ele mesmo não mora mais na Antonio Everdosa há oito anos.  Mudou-se com a esposa para a Enéas Pinheiro, a 40 metros da casa do pai.

Nonato chamou os vizinhos para a empreitada. Disseram que aquilo não era trabalho dele, nem deles, era da prefeitura e caçoaram dele. “Eu disse que se a Prefeitura não faz a gente não pode deixar desse jeito. Mas agora mesmo dois vizinhos já passaram aqui e ficaram gozando com a minha cara. Disse que se eles não ajudam pelo menos não deveriam encarnar”, contou.

O comerciário não liga para as brincadeiras, mas se espanta com certas reações. Ele começou o trabalho ontem, no domingo. Deixou o mato e o lixo tirados na lateral. Depois de capinar, o dono de um carro de mão de madeira (desses grandes que esses carregadores conduzem pela periferia carregando lixo da frente das casas para terrenos baldios e esquinas cheias de entulho que semanalmente a Prefeitura recolhe) passou em sua casa. Bateu lá e mandou chamá-lo. O homem disse que levaria o lixo por apenas R$ 10.

“Achei abusado. Eu disse para ele que eu não morava lá em frente ao canteiro central e que ele deveria ter pedido para os donos das casas de lá. Pois veja, que os vizinhos indicaram a minha casa para que ele fosse oferecer o serviço lá, mesmo eu não morando na rua. Quando fui fazer o trabalho pedi que os vizinhos colaborassem ao menos com R$ 10 cada um, que eu chamaria uns amigos da igreja onde congrego para eles ajudarem”, contou ele, que frequenta a Quadrangular no mesmo quarteirão.

“Se ele [o carregador] aparecer hoje, deixa que eu mesmo vou de porta em porta com ele pedir que os vizinhos paguem o serviço dele”, finalizou.

A. Everdosa com Enéas Pinheiro, na Pedreira, onde a PMB não aparece. 

Corta a cena. Ontem, domingo, na Praça da República um colega professor de música me encontrou e contei do assalto, ele, por sua vez, contou a seguinte história. Muito tempo subempregado, ele foi aprovado no último processo seletivo da Secretaria Estadual de Educação, e está dando aula. Contou que estava com a licença da moto vencida e foi parado em uma blitz. Teve que deixar R$ 100 de propina para o guarda para ser liberado.  “Achei caro para uma moto”, disse ele.

Sem nenhuma cerimônia, Aluísio (nome fictício) contou que pegou um case de violão vazio e foi para a sala de aula e roubou um dos 11 violões novos que a escola tinha. Vendeu por R$ 150. “O Estado quer me roubar?! Então, tá”, disse ele a guisa de justificativa.

Esse é o estado de coisa do meu Brasil varonil hoje em dia.



sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Repercussão: o grito e o baque secos na periferia

De acordo com o sistema de estatísticas do Google, 208 pessoas leram meu post sobre o assalto na 3 de Outubro até o momento que escrevo este segundo post. Apesar do número não ser muito grande também não é desprezível no contexto local. Apesar de não haver nenhum comentário no blog, posso dizer que jornalistas e pessoas com alguma influência na política da cidade leram o texto. O jornalista Carlos Mendes, do Ver-O-Fato, por exemplo, foi um deles. Mendes, gentilmente, reproduziu meu texto, o que deve ter aumentado bastante a audiência do relato. Alguns colegas e amigos manifestaram solidariedade, destaco o Marcelo Gabbay, de São Paulo, a Anete Pitão, que enviou uma carinhosa mensagem de voz pelo whatsapp do Rio de Janeiro. Enize Vidigal e Aline Brelaz manifestaram sua solidariedade no post do Carlos Mendes no Facebook, e Daely Cunha, que hoje mora no Espírito Santo manifestou, além da solidariedade, sua indignação e revolta com o estado de coisas no Pará. Cada um com seu olhar, como tem que ser entre os comuns, com diferenças.

Hoje de manhã em frente à DRCO. Repare o detalhe da cadeirante. Não viu?

Minha eterna vizinha amiga, da época que morava na Vila D. Luiz, lá no Telégrafo, Elizabeth Maciel também manifestou carinho por mim, assim como a minha vizinha e amiga atual, Betânia Galiza, que também informou que bandidos de moto e armados vêm atuando recentemente na área já tem um tempo. Agradeço a esses e a todos os outros amigos e colegas que manifestaram diretamente sua solidariedade. Um velho amigo da universidade me ligou quase de madrugada dizendo que ouviu falar no meu relato. Perguntou, brincando, se era verdade o que eu tinha narrado ou se tinha inventado tudo. Eu disse, brincando, que havia inventado tudo para que os amigos lembrassem de mim e me ligassem.

 Brincadeiras a parte, acredito que também posso ter influenciado ao menos mais um “digital influencer”. O amigo Anderson Araújo (Aderson Jor para os íntimos de Facebook), que atualmente mora em Altamira e é assessor de comunicação na Norte Engenharia, empresa responsável pela construção, manutenção da Hidrelétrica de Belo Monte e suas obras de redução de impacto social e ambiental.  Anderson, porém, não me enviou mensagens de solidariedade nem publicamente nem de forma privada. Anderson é um amigo querido. Fomos colegas no jornal Diário do Pará. Dos meus amigos jornalistas é dos que já vieram em minha casa nas quebradas da Sacramenta. Foi uma única vez, há alguns anos, quando de visita a Belém veio jantar em casa com alguns outros amigos. Anderson se criou na Pedreira, bairro vizinho ao meu. Onde também tenho amigos. Às vezes tomo uma nos espetinhos e bares da Antonio Everdosa, rua do Cabo Leno, um dos policiais acusados de fazer parte de uma milícia, cujo endereço foi publicado juntamente com o mandado de prisão de mais alguns policiais pelo colega Carlos Mendes em seu blog.

Anderson é, por assim dizer, uma celebridade local.  Foi indicado ao Prêmio Fiepa de Jornalismo esse ano pelos comentários que posta em seu perfil no Facebook, cheios de tiradas de humor e de insights criativos e críticos sobre a política nacional, comportamento, moda, enfim, de quase um tudo, como diz o caboco aqui da Sacramenta. Olha o que Anderson escreveu em seu perfil poucas horas depois que Carlos Mendes republicou meu relato sobre o assalto:

“Acho que não vale a pena mais gastar uma linha de textão sobre a situação política do Brasil. Tem que entregar na mão dessa galera que acha que tá bom, que acha que fez a coisa certa, e cada um cuidar da sua sobrevivência.
Que se foda a porra toda.”

Tive a impressão que Anderson (se eu estiver enganado ele pode me corrigir, tranquilamente) se deixou influenciar por um dos pontos do meu texto no blog em que digo que escrever “textão” no Facebook é “hipocrisia, falta do que fazer ou não resolve nada mesmo”. Foi dito assim mesmo, de forma agressiva, dada o calor da hora em que o texto foi escrito. É o que pensava na naquela hora e é o que tendo a pensar. Mas mudei de ideia por causa do assalto. Mas ressalvei que me incomoda ver todo mundo falando sobre política nacional e esquecendo de problemas que parecem “pequenos” no nosso cotidiano. Mesmo que eu não tenha influenciado Anderson, ele já é uma figura pública e podemos discutir seus comentários para compreender alguma coisa sobre esfera pública.

Veja que, algumas horas depois, Anderson teve a infelicidade de ter a notícia de uma vizinha de sua família no bairro da Pedreira assassinada na porta da casa dela. Parece uma ironia cruel do destino. Anderson mandou “cada um cuidar da sua sobrevivência”. Como se já não fosse assim, no nosso dia a dia, independente da ladroagem de Brasília, não é mesmo? Por um momento me pareceu que esse negócio de digital influencer subiu à cabeça do meu amigo Anderson e ele realmente achou que suas críticas bem humoradas dentro do Facebook contribuem verdadeiramente para a mudança da realidade de alguém. O destino trágico da vizinha de Anderson (podia ser eu, podia ser a mãe dele, podia ser qualquer um de nós) o fez começar o post seguinte da seguinte forma:

“A violência extrema de Belém a duas casas de onde mora minha família e me sinto na obrigação de escrever esse relato, a morte da dona Deja.”

Não, não fui eu que influenciei Anderson, com minhas possíveis indiretas, a se sentir obrigado a escrever sobre a violência a duas casas da sua. Foi a triste realidade física, próxima de sua família. Uma tristeza enorme que compartilho com Anderson e todas as famílias de todas as vítimas de violência em Belém e em qualquer lugar do mundo, inclusive na Somália.

Não podemos (aliás, por isso mesmo não devemos) ignorar nossos problemas cotidianos. É por isso que estou escrevendo novamente esse textão. É uma obrigação comum. Esses eventos me dão a oportunidade de esclarecer minha visão sobre a ideia de agendamento da mídia nacional que nos faz discutir política e não discutir segurança, saneamento, educação na escola do nosso filho etc.

Vamos lá: existe uma teoria do jornalismo que os brasileiros traduziram exatamente como teoria do agendamento. Ela se traduz de forma simplória (como várias das ditas “teorias” do jornalismo) em que a imprensa pauta a vida cotidiana das pessoas, suas conversas e parte de suas ações. Parece óbvio, né? O papo sobre o futebol no trabalho, as conversas de Facebook sobre o julgamento do Lula e/ou a votação do Aécio. É normal termos conversa comum para por em dia.

Ocorre que posso cruzar esse agendamento com a teoria do espetáculo (muitos pensadores do jornalismo também já fizeram essa associação, isso não é novidade para os colegas de profissão que estudaram na faculdade, mas vou resumir). O espetáculo lhe prende a atenção e desvia seu olhar. Mesmo que você discorde da votação, mesmo que você tenha uma opinião muito crítica sobre esses temas, suas atenções estão voltadas para um ponto do “palco”, onde o “mágico” faz seus malabarismos, e você esquece de olhar para onde o truque é realmente armado, atrás das cortinas, embaixo da mesa, na cartola do mágico. É uma cortina de fumaça. Tente transferir essa analogia para a vida social.

Detalhe de segurança pública: Ciclista e cadeirante na pista, carros na calçada


É no cotidiano onde as coisas acontecem. Ninguém está dizendo que não há corrupção política e que não é importante combatê-la. Estamos buscando uma solução efetiva, no entanto. Toda corrupção política tem como base o desvio de dinheiro público. Dinheiro arrecadado do contribuinte, do cidadão comum e dos agentes produtivos, empresários, profissionais liberais, trabalhadores, enfim. O processo de arrecadação faz parte de um pacto social em que o Estado se compromete a aplicar esse dinheiro sob princípios de transparência, legalidade, eficácia, impessoalidade etc. A segunda parte desse pacto é o retorno que esse dinheiro tem em benefícios comuns à sociedade: asfalto, sinalização, hospitais, segurança pública, saúde, educação e tudo o mais que esse dinheiro possa pagar sob esses princípios.

Falar sobre o trânsito e a violência local também não muda a realidade a priori mas cria um espectro de opinião pública muito mais forte e efetivo nas mudanças cotidianas. Cobrar (e é preciso saber cobrar) forçará (é o que se espera de um reclame, de uma queixa) que o Estado busque soluções ou dê respostas efetivas, independente de quem estiver no poder seja o PSBD, o PT ou quem quer que seja. Um princípio de cidadania que nada tem a ver com a dimensão espetaculosa que a grande mídia incorporou e que os micro influenciadores digitais reproduzem em seus pequenos universos, influenciados, de fato, por quem agenda suas pautas: a grande mídia corporativa.

Um pouco mais de humildade em nossos espectros de influência pode de repente ampliar os resultados efetivos sobre a realidade próxima. É o que penso. Continuo não tendo tempo para textões, mas sou obrigado a escrever mais este. Sinto que devo escrever mais alguns sobre coisas bem próximas. Assunto não falta. Se eu sobrevivi até aqui. Estaria forçando a barra se me arriscar mais um pouco apontando falhas em nosso sistema de segurança pública? Não sei. O que você acham?

Ah, quase ia esquecendo: no mesmo dia do assalto, a Secretaria de Mobilidade Urbana de Belém (Semob) guinchou meu carro ao lado de um shopping, onde fui comprar um celular novo, em uma rua de sinalização precaríssima, onde sequer havia faixa amarela (ou de qualquer cor) ao lado da pista. Mas na porta da Divisão de Repressão a Furtos e Roubos (DRFR) e da Divisão de Repressão e Combate ao Crime Organizado (DRCO) da Polícia Civil os carros continuam estacionados sobre a calçada e sobre a ciclovia. 

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

A vida social por um fio: o empreendedorismo criminal


Aconteceu essa manhã. Quando dobrei na Passagem 3 de Outubro, saindo da Dr. Freitas, voltando da minha caminhada matinal, a moto parou a meu lado. A mão do carona foi direto para a cintura, bem na direção do meu olhar. Sacou a arma enquanto descia do veículo e mandou eu “ficar na minha”. O impulso de um milésimo de segundo me fez procurar um rota de fuga no mesmo instante em que a moto parou e vi a cena. Já sabia que era um assalto. Mas ao ver que eu titubeava, o bandido reforçou: “deita no chão! Eu vou te matar”. Enquanto aproximava a arma da minha cabeça, que começava a me preparar psicologicamente para morrer, ele continuou: “deixa ver se tu não é policial.” Eu estava ajoelhado, olhando para o chão. Depois de me revistar e ver que não tinha mais nada além do celular, ele pegou o aparelho, montou na moto e foi embora. Um dos donos do restaurante popular em cuja frente ocorreu a cena, saiu logo depois e me olhou com aquele ar misto de pena e solidariedade. “Impressionante, rapaz, como esses caras humilham a gente”, disse ele.

Divisão de Repressão a Roubos e Furtos, na Sacramenta, Belém-PA
Cheguei em casa, poucos metros adiante, e vi que o aparelho ainda estava ligado porque o whatsapp web (recurso que permite mandar e enviar mensagens pelo computador conectado ao aplicativo) estava ligado. Por uma hora ainda pude entrar em contato com as pessoas que eu conversava para alertá-las sobre o assalto. Achei que eles poderiam estar monitorando meus contatos, mas acabei pensando mesmo é que eles desligaram o aparelho somente depois de terminar a “ronda” matinal.

Já fui assaltado muitas vezes. Morando na periferia de Belém, já presenciei cenas que nunca ousei relatar no Facebook (não é lugar de expor suas fragilidades, não é mesmo?) mas segui em frente, cuidando de mim e dos meus. Mas juro que naquele momento em que me ajoelhei, eu me preparei para morrer. Quando você convive com a violência, você acaba se preparando para situações como essa. Depois que você evita certos lugares e certas práticas, em certos horários etc etc; e, ainda assim, coisas como essa acontecem às 7h30 da manhã, em via pública, diante das pessoas, você percebe que além desses cuidados (para evitar a violência) você também tem que estar preparado para morrer. A morte torna-se banal e não é para o outro é para você inclusive.

Ok. Mas você não morreu! Você dá graças a Deus por isso, mas também lhe convém continuar na vida tentando achar novas soluções para um problema crescente, presente, vivo. Ou vamos desistir de viver. Não! Vamos morrer lutando, tentando entender.

Hoje em dia odeio textão de facebook. Não porque não goste de ler. Acho que, na maior parte das vezes, é hipocrisia, falta do que fazer e não dá em nada mesmo. Fazia. Parei. Até mesmo meu blog está subutilizado pelo descrédito em quem me ensinou a escrever e analisar fatos cotidianos. Escrevo projetos, cartas, esboços de livros e pesquisas que, acredito, possam mudar de fato a minha vida e a vida das pessoas que amo. Mas a gente não pode passar por uma experiência dessas sem refletir e sem compartilhar com um grupo maior de pessoas, urgentemente, porque isso é o nosso cotidiano. O nosso lugar do comum. O espaço da nossa convivência.

Quando fui assaltado há dois anos na Praça Dorothy Stang, à noite, vestindo roupa social, em companhia de uma namorada, me disseram que eu não devia estar ali. Sei que não é justo dizer que a culpa é da vítima, afirmar que devem existir lugares públicos na cidade que você não deve frequentar. Não aceito essa proposição. Paguei o preço de arriscar viver em sociedade, encarando uma população ainda mais pobre que eu no nosso lugar comum. Mas me rendi aos fatos e às circunstâncias. Sei que a vida real exige cuidados práticos. Fui assaltado ao lado de um PM Box. Nunca mais dei esse “mole”. Meu novo celular durou quase dois anos sem ser roubado. Um recorde.

 Mas, entre todas as outras experiências que vivi vendo a violência da periferia de Belém, nenhuma me deu tanto medo quanto esta última. Como eu disse, a convivência com a violência lhe cria uma casca. Vida cotidiana, morte cotidiana. Sempre foi pior e mais revoltante para mim a violência institucional de agentes públicos, de colegas de profissão e trabalho, de pessoas amadas que lhe traem não apenas a confiança, mas te violentam mesmo (escrevamos isso com muito cuidado e deixemos em suspenso, por enquanto). O que quero dizer é que não dá para ficar escrevendo textão sobre corrupção do congresso ou do executivo, é preciso analisar a degradação cotidiana, que está ao nosso lado, dentro de casa, no trabalho, na nossa rua, dentro de nós. Ou você acha que chegamos a esse ponto no Brasil de hoje graças aos “outros” e não graças a um conjunto de valores comuns? “Eles” e “nós”. Certo. Entendo. Mas por que falamos “deles” lá e não falamos deles aqui?

Ok, estamos falando da bandidagem, daqueles que não têm jeito de serem considerados “comuns” a quem é cidadão “de bem” (observem atentamente estas aspas) e vive honestamente de seu trabalho. Você, por um momento, quando tenta cumprir suas obrigações junto ao Estado, pagar seus impostos, suas taxas, suas multas, mesmo vendo blitzen diárias no trânsito e vendo os órgãos arrecadando uma dinheirama sem que isso se reverta em absolutamente nada para o cidadão “de bem”, perde o controle, revolta-se. Como não se revoltar? E como ser tão passivo?! De um lado a bandidagem te humilhando e te roubando, de outro lado o poder público te arrochando os bolsos, e te humilhando também. Por um momento você entende perfeitamente os seguidores do Bolsonaro, que sabe como poucos catalisar essa revolta “comum”.

Mas, novamente, vamos tentar refletir. Pense em dois homens brancos talvez entre 25 e 35 anos, em plena idade produtiva, portanto, dirigindo uma moto às 7h da manhã, procurando um “trouxa” como eu que decidiu sair para caminhar de manhã levando o celular na mão. Veja bem, são homens brancos, de porte físico, de fala articulada. Aquele é o “trabalho” deles. Se eles não passaram a noite “cheirados” e decidiram “meter o bicho” para descolar um troco e manter a farra no dia seguinte, eles seriam outra coisa. Que coisa? Essa primeira análise é a análise, penso eu, que a classe média “bolsonariana” faria a princípio. A análise do “pobre preto e desfavorecido”, que seria a análise da classe média autodenominada “de esquerda” já caiu por terra no início desse relato.

Quem seriam essas pessoas, então? Integrantes da milícia armada que atua impune nas ruas de Belém? A interrogação que me fizeram sobre eu ser policial enfraquece essa versão. O revólver usado no roubo também. Era um 38 velho. Já vi a milícia atuando. São pessoas que assumem postura de atiradores profissionais quando correm armados. Eu vi essa cena na rua de noite com mais quatro testemunhas dentro do carro. Eram homens em idade produtiva de classe média. Sim, com a coragem de ir para a rua roubar e talvez matar para garantir um padrão de vida, um “sustento” qualquer que seja ele. Pela minha experiência (além de ter sido assaltado muitas vezes, de conviver no mesmo espaço que marginais de diferentes classes sociais, eu fui repórter, fiz até curso de detive e cobri a polícia por um tempo), eram pessoas de classe média e não estavam drogadas. São bandidos. Mas, um tipo entre tantos tipos de bandidos a solta.

Apesar do medo de morrer na hora em que o assaltante disse que me mataria, pude constatar (estando vivo agora) que eles, enfim, não me matariam mesmo. Ao menos não me matariam se eu não tivesse uma arma. Depois do susto parece o óbvio ululante, mas me diz que foram mesmo é oportunistas, aproveitaram meu descuido e que agiram de forma consciente, em uma área que aparentava segurança para a ação. Uma ação planejada. Talvez tivessem me seguido por uma ou mais quadras antes de agir.

Você fica pensando nessas pessoas acordando cedo, se arrumando e indo para a rua roubar às 7h da manhã quando o cidadão sai para o trabalho ou volta de sua caminhada matinal. Quando você pensa neles como pessoas comuns, você os imagina planejando a ação e circulando com o celular ligado, do jeito que foi tomado da vítima, por mais uma hora, enquanto fazem outras vítimas. Talvez eles tivessem até uma meta de “arrecadação”. Digamos que eles roubem 10 celulares por semana. Digamos que consigam vender estes 10 celulares por 300 reais. Faturam 3.000 reais em uma semana. Algo melhor do que viver sem renda nenhuma em situação humilhante diante da roubalheira nacional. São empreendedores do roubo! Fico imaginando essas pessoas discutindo a votação no senado sobre a permanência do senador Aécio Neves ou o julgamento de Lula. Some isso a todas as notícias de roubo e ações violentas que ocorrem no país e você tem um quadro que causa pânico e cegueira social nas pessoas comuns, mas onde é claro o sentido de degradação generalizado para quem tentar encontrar soluções fáceis. Como os “bolsonarianos”. A mim, fica claro que temos que dar respostas no mundo da vida, na mudança e reorganização da sociedade. Quem sai de casa para roubar como se fosse um trabalho, está sujeito a matar e morrer. A sociedade também estará preparada para isso, como eu me preparei para morrer. Ontem mesmo um vídeo no whatsapp mostrava uma parte da população agredindo um bandido dentro de uma casa em que ele entrou. Isso porque a essas pessoas fica cada vez mais claro que não há justiça senão pelas próprias mãos. Hão de se organizar também como em milícias, quem sabe?

        A mim, resta decidir se presto queixa na polícia ou não. Afinal, fui assaltado a pouco mais de 100 metros da Divisão de Repressão a Furtos e Roubos (DRFR) da Polícia Civil, onde, como se pode ver na foto, carros e mais carros se acumulam sobre a calçada e a ciclovia sem que os colegas de blitzen do Detran façam qualquer coisa. A certeza da impunidade é um incentivo ao empreendedorismo criminal emergente.  
         
         Quanto à nossa vida, preparamo-nos para morrer pensando que é o único destino certo. Vida cotidiana, morte cotidiana. O foda mesmo é pensar no fim da vida social como um ambiente em que deve florescer aquilo que aprendemos chamar de “humanidade”.