sexta-feira, 5 de maio de 2017

Como nossos pais?

Belchior foi um artista profícuo. Mais um da geração que eu cresci ouvindo que se foi. Uma semana antes, esta entre amigos quando chegou a notícia de que Jerry Adriani tinha morrido. No dia seguinte, tirei uma música dele com Os Amadores, a minha banda atualmente. Tocamos ela. Eu já vinha estudando e tirando as músicas de Belchior, quando chegou também a notícia de seu falecimento. Quis prestar uma homenagem, quando vi um post chocante de uma colega jornalista que gratuitamente parecia querer apenas polemizar. Dizia que Belchior era um "bosta como pessoa". Apenas pude escrever um post no meu perfil do Facebook, que reproduzo aqui para deixar de registro. De um fôlego só, sem pontos parágrafos e sem muitas vírgulas, ficou assim:



Vejo na minha TL gente que demonstra extrema falta de caráter para ganhar likes e popularidade em seu perfil. Essa pessoa chama Belchior de “bosta”, como “pessoa”, apesar do artista cearense ter produzido “uma obra extraordinária”, o que atesta a sua “genialidade”. A afirmação pueril, maniqueísta, ingênua e burra deve ser também fruto de recalque. Esta pessoa não sabe sequer por que Belchior seria “genial”, muito menos saberia dizer por que ele foi um “bosta” como pessoa. Tenho um amigo francês chamado Michel Maffesoli que garante que o gênio não é de “outro mundo”. O gênio é um ser terreno. Sendo assim, não seria possível dividir as pessoas em duas, sendo uma melhor que a outra. Sendo um gênio, Belchior seria um gênio por que motivo mesmo? Por que é um grande artífice de versos bem metrados e rimados? Não. Não eram as características de sua obra. Era um cronista de seu cotidiano, dizem analistas da Rolling Stone e de outras publicações que são mais acostumadas à análise de obras musicais e literárias. Percebo também que Belchior era coerente com seus versos e inadequado ao establishment. Daí, talvez, sua reclusão. Um poeta rebelde, revolucionário e libertário tende a não se prender ao conceito burguês de família moralista, hipócrita e tirano. Não usa seus filhos como argumento para ser mesquinho, opressor ou oprimido. Será certamente egocêntrico e egoísta em algum momento (como todo mundo terreno). E amará a seu modo os seus também. Ademais, quem reclama ausência de pai (principal argumento contra a idoneidade de Belchior) é filho. Qualquer outro estará a praticar alienação parental (em tese, sem tornar isso uma afirmação categórica nem bandeira de luta). O digo com a experiência de pai alienado, de filho que reclamou ausência paterna e de artista que sofreu o bullying da “normalidade” e da “bondade”. Repito: a pessoa que julga Belchior genial não é competente para dizê-lo dessa forma. Apenas reproduz o que outros disseram. O mesmo o faz a respeito de seu julgamento sobre a qualidade da pessoa que ele foi. Ouviu dizer de colegas jornalistas sobre sua “fuga” e o abandono da família dele. História muito mal explicada desde sempre. Pensão alimentícia não é “bondade” nem “presença paterna”. É apenas dinheiro. Qualquer ação simples poderia, por exemplo, sequestrar os direitos autorais de Belchior pelas muitas músicas que até hoje tocam no cinema, na rádio, na televisão -- só a sincronização dos direitos das músicas que Elis gravou dele no filme recente sobre ela pagaria um débito de pensão. Uma simples ação judicial (se é que não existia) teria garantido os alimentos (como se diz no jargão judiciário) de seus filhos, já que não é ele mesmo que recolhe seus direitos autorais mas sua associação arrecadadora. Portanto, as pessoas que falam de direito de família e da vida de artista nada sabem sobre essas coisas no caso em particular. Certamente, Belchior pagou, ainda em vida, o preço pela escolha de sua coerência e/ou de sua ausência (seu egoísmo, sua covardia, talvez), deve ter sido perseguido (ou não) por seus próprios fantasmas até o fim. Quem sabe o que o levou a essas escolhas? Sabemos, por sabermos que os gênios são deste mundo e não de outro, que ele era humano. Demasiado humano. E deve ter sofrido e se alegrado com entusiasmo e talvez com muito pesar. Mas sua coerência não lhe permite ser ofendido de tal maneira em morte, sem que se diga da canalhice de quem o faz em vida. Não se trata de santificar o morto. Trata-se, tão somente, de se fazer a justiça perante os canalhas que nos tomam de assalto cada pedaço de dignidade a cada instante nos mais miseráveis espaços da vida, virtual, política.. da vida, enfim. Certamente, um ser mal amado que projeta seu desamor tentando amenizar sua existência miserável. Desculpem os amigos o desabafo e se projeto nele eu mesmo minhas frustrações. Dei-me o direito neste tribunal. Vou limpar minha TL.