Como Caco Barcellos nos mostrou, mais do que sobre a crise
do “funcionalismo público” no Brasil, sobre a crise da comunicação
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Se você é jornalista, peço que leia esse texto de coração e
mente abertos até o final. Acabei de ver o episódio da série Profissão
Repórter, conduzido por Caco Barcellos, sobre “a crise do funcionalismo público”.
E a impressão que tive, mesmo diante de um excelente trabalho de edição e
cobertura jornalística, é que a reportagem se apequenou em vez de se
engrandecer. Uma afirmação que contraria, certamente, a opinião da maioria dos
colegas que se sensibilizou com a agressão que Barcellos sofreu durante a
cobertura dos protestos em frente à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.
Devo dizer, de antemão, que não sou de modo algum a favor
desse tipo de violência. Além do mais a liberdade de imprensa deve ser preservada
sempre. Mas esses fatos não devem, por sua vez, nos privar do direito de
analisar os fatos criticamente, como bons jornalistas que somos. Quando digo
que a reportagem se apequenou, tento falar do trabalho do repórter que se
tornou grande em seu ambiente urbano, diante dos manifestantes, mas não avançou
na relevância crítica dos (complexos, porém, politica e sociologicamente compreensíveis)
problemas do país hoje.
Vamos lá, com calma, chegando devagar na questão. Caco
Barcellos deu uma grande contribuição ao mostrar a situação desesperadora de
alguns servidores públicos e de alguns estados quebrados. É uma situação
dramática, sem dúvida. Dada sua grandeza presumida, não poderíamos esperar que
Caco Barcellos tornasse a sua agressão um episódio sensacionalista, que girasse
em torno exclusivamente do seu direito de reportar o fato. Caco, como todos
disseram, e eu concordo, é um grande repórter e estava fazendo seu trabalho bem,
como sempre fez. Deu conta de mostrar uma realidade palpável. O elemento
primário, ainda que não fácil, do jornalismo.
Não resta dúvidas que a equipe de Barcellos, seus jovens
repórteres, mostrou com grande competência os sinais e os efeitos da crise do
funcionalismo público nos estados do Tocantins, do Rio de Janeiro e do Rio
Grande do Sul. Opa! Mas, calma, crise de quê, mesmo? Crise do funcionalismo
público?
Antes mesmo do programa começar, já estamos, editando. Enquanto
algumas pessoas estão relativizando a crise, outras estão segmentando a crise.
Esse recorte é a base do jornalismo de meia verdade da Rede Globo, que é muito
maior do que Caco Barcellos.
Se existe uma crise, ela também é bem maior do que o “funcionalismo
público”. É uma crise que envolve o
jornalismo inclusive. Não somente porque estamos perdendo postos de trabalhos.
Mas porque o jornalismo tenta reencontrar uma função para a sociedade dentro
desse novo panorama, pelo menos no Brasil. A crise é institucional, é política,
a crise é da sociedade brasileira.
Caco Barcellos foi um grande repórter e mostrou isso. Isso
ficou evidente em seu programa para quem sabe ler e entende a história, a
economia e a política do Brasil. Mas ele não deixou isso mais claro para quem
não entende isso. Sequer ousou em fazer perguntas como: por que a crise do
funcionalismo chegou a esse estado de coisas? Qual o papel das elites nessa
crise? Qual o papel da política nela? Pacto federativo? Corrupção sistêmica?
Como tudo isso se relaciona nessa crise?
O jovem repórter Manuel Soares se sai muito bem, assim como
o próprio Caco Barcellos, no corpo a corpo com os personagens. Mostra que,
diferentemente do que pode se abstrair de alguns comentários na internet, o
repórter não precisa ser o centro da notícia, mas ele é participante, sim. Mas o
jovem aprendiz não se sai tão bem quando entrevista o governador do Rio Grande do
Sul. Faz uma pergunta do tipo: “e a situação dessas pobres famílias?” Ora, a
questão a tratar com um político é: qual a motivação de tal crise? Qual a
solução? A situação das famílias nós já sabemos, graças a uma parte bem feita
da reportagem. E a outra?
Caco, ao dar entrevista ao estudante de ciências sociais que
divide o apartamento com o professor de sociologia que ficou desacordado
durante o protesto, diz que entende a reação de alguns manifestantes, mas
preserva seu direito de trabalhar. Ponderado, diz que a agressão é quase consequência
natural do seu trabalho. Vai na mesma linha daquela oração que diz que o
direito do trabalhador jornalista não é a mesma coisa do direito do patrão.
Sim, Caco está certo. Trabalhador é trabalhador e patrão é patrão. Mas o trabalho dele é garantir que os
trabalhadores e a sociedade entendam a crise e não apenas conheçam a realidade
da crise. Até porque o trabalhador vive essa realidade cotidianamente. Estaria,
portanto, reportando a uma classe média, privilegiada, que não sofre com a
crise? É provável.
Podemos observar muitas nuances desse novo momento da
comunicação. O repórter, e poucos são tão bem articulados e desenvoltos como
Barcellos, passa de entrevistador a entrevistado. Ele não deixou de virar
notícia, como disseram alguns colegas na rede. Ele apenas atenuou isso em sua
edição. Ele deliberadamente se retirou do foco da agressão. O que, em si,
facilita as coisas para ele. Em sua edição ele também reforçou os muitos
momentos em que alguns manifestantes lhe demonstraram apoio e nos momentos em
que ele se mostrou representante dos interesses desses manifestantes. Um jogo
de cena comum na arte da edição. Pode ser usado para dizer que o Collor ganhou
o debate ou que um manifestante está sendo intransigente.
Talvez seja um direito do repórter, já que a realidade
mostrada, nua e crua, também favorece os servidores em sua luta. Mostra para
outras audiências, além d a classe média e da classe política, que há motivos
reais para a luta, mas o programa não tem a mesma audiência que o Jornal
Nacional, por exemplo. E, servidor público, não deixa de ser uma classe média no
Brasil. Um público respeitável dentro da audiência da Globo.
É claro que se ele fosse brigar com a Globo para mostrar
mais que isso talvez não estivesse lá. E, estando lá, ele pode mostrar os
dramas reais causados por uma crise institucional, de cima para baixo, que
corrói a sociedade brasileira e penaliza em primeiro lugar os que têm menos, a
despeito dos vícios de edição e abordagem. Quem sabe ler pode entender.
“Numa realidade ideal”, como diria Paulo Nogueira do site o
Centro do Mundo, a reportagem de Caco Barcellos desmontaria qualquer pacote de
maldades em nível nacional, bastando completar o relato pungente dos fatos com
uma análise política séria.
Nesse mundo ideal, não precisava ser radical de esquerda
para mostrar um pouco mais da profundidade dessa crise. Seria possível mostrar
isso com gráficos e infográficos explicando o papel arrecadatório da União e dos
estados, mostrar como a corrupção sistêmica, as desigualdades e as políticas
elitistas e de contenção preservam os privilégios de quem tem mais e achatam os
salários do “funcionalismo público”, paralisando a economia.
Mostrar isso, mesmo sem tomar partido, tornaria evidente um
golpe institucional e o papel tirano do governo Temer, entre outras realidades
possíveis. Mas isso a Globo não deixaria.
Nesse ponto eu pergunto: a reportagem não pode crescer no
entendimento da realidade social e política do Brasil? Precisamos dos
especialistas? Seria esse papel exclusivo da sociologia? De que maneira estamos
limitando o espaço da reportagem? Seria isso o que certos críticos da profunda crítica
jornalística chamam de “perorações sociológicas”. Não. Nada disso confere. O
jornalismo deveria crescer como cresce a complexidade dos problemas da nossa
sociedade. Não dá mais para explicar a realidade com roteiro de telenovela.
O programa de Caco Barcellos se propõe a ensinar. Não por
acaso muitos disseram que ele deu uma aula. Mas que aula é essa? O que estamos
ensinando como jornalismo? Na Globo, nas universidades?
Será que estamos fechados em uma posição corporativista,
defendendo nosso direito de trabalhar, acima dos interesses da sociedade? É
preciso fazer um exercício de transcendência desse jornalismo. Mas não o
estamos fazendo a contento, dando o direito à maioria da população de se
informar corretamente sobre situações fundamentais para a sua vida em
sociedade. Diante do quadro midiático atual, é como se Caco Barcellos estivesse
dando esmolas, como os estudantes que foram às ruas pedir dinheiro para
completar a renda dos professores. Se essa é a solução, então, a sociedade toda
tem que repartir o que tem. Mas isso, como a senhora entrevistada pelo jovem
repórter Manuel, as elites não permitem.
Se fizermos esse tipo de concessão
daqui a pouco estaremos no comunismo (ironia mode on). E mesmo um repórter de
primeira linha, como Caco Barcellos, tem suas limitações.