quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Ideologia e comunicação no Brasil (A partir de onde estamos)

De acordo com o sistema de estatística do Google, mais de 500 pessoas leram o meu artigo sobre a violência em Belém, leia aqui. É uma audiência maior do que todos os alunos de comunicação que tive nos mais de quatro anos de docência, mesmo considerando a crise dos cursos de comunicação das últimas décadas. E, a considerar pela minha time line no Facebook, trata-se de um público qualificado. Professores, jornalistas, artistas, estudantes de comunicação, arte e filosofia, entre outros. 


Apesar dessa audiência recorde no blog, pouca gente comentou o artigo. Apenas duas pessoas, na verdade. A Daely Cunha, jornalista paraense que mora atualmente no Espírito Santo, e o editor do site de notícias G1 Pará, Ingo Muller. Como são importantes formadores de opinião, eu gostaria de repercutir aqui os comentários de ambos, que, de antemão agradeço a coragem e disposição para o debate. Vejo muitas pessoas no Facebook mandando indiretas sobre entrar em "tretas", marca típica de um tempo de pessoas que não aprenderam que a vida social exige conversas nem sempre agradáveis. Ou de gente cansada pelo tempo de tantas polêmicas.  

Vale dizer que, a despeito da diferença de opiniões, é muito bom e louvável que ambos tenham se disposto ao diálogo, pois a intenção de uma abordagem fenomenológica é exatamente promover um debate, abrindo os conceitos predeterminados à nossa avaliação conjunta, crítica. Se conseguirmos ao menos em parte promover essa abertura já teremos um ganho considerável.

Primeiro, a Daely fez uma crítica severa à proposição de que o agressor negro no primeiro vídeo que analisei seja um “garoto” e mereça piedade ou complacência (veja os comentários dela aqui). Fez várias considerações sobre projetos de ressocialização, mas enfatizou que o mesmo tem que sofrer drasticamente as consequências de seus atos. Em seus comentários transbordou um forte viés ideológico na expressão “esquerdalha” e na citação do PT. Viés ideológico e afetivo. É o que poderia chamar, de acordo com as observações preliminares do outro artigo, de "pulsão moral". 

Sobre isso, vale dizer que em nenhum momento eu defendi o alívio de pena sobre qualquer dos infratores citados no artigo. Apesar de Daely não fazer nenhuma citação ao atirador executor branco, nem ele nem o jovem assaltante devem, perante a lei, ter qualquer alívio de pena, a meu ver. Nas prisões, porém, poderia haver trabalho que justificasse o dinheiro investigo em segurança e quem sabe o retorno desse dinheiro. Daely falou sobre a "Fábrica Esperança". Quem tiver mais detalhes sobre o projeto poderia encaminhar para o blog. Deveríamos cobrar isso e acompanhar um projeto como esse. 

Mas, sobre essa divisão ideológica, é preciso dizer que é um problema crônico do Brasil, pelo qual são tão responsáveis aqueles que se dizem de esquerda, quando aqueles que defendem os princípios conservadores da elite nacional. Ao que parece hoje o Brasil é um projeto inacabado de nação que não comporta as diferenças de sua formação étnica, cultural e social. Mas, em se tratando de poder político, não tem como negar que há uma elite conservadora que golpeou fortemente o esboço de democracia até então vigente. É preciso conciliar esses vieses ideológicos nas soluções práticas para os nossos problemas. Ou então, vamos logo à guerra!


Hurssel declarou crise nas ciências europeias ao propor uma fenomenologia transcendental


O PT aparelhou o estado e minou a capacidade de organização da sociedade civil no estamento inferior (e maior) da sociedade brasileira. Não inventou a corrupção e nem a elevou aos maiores patamares, na minha opinião. Simplesmente porque a política de compadrio, de autoritarismos de classe, preconceituosa e perversa que aqui impera não é, nem nunca foi, considerada "corrupção" porque faz parte da gênese fisiológica do Estado brasileiro.  Não se pode enxergar corrupção de dentro de um organismo que na sua própria consistência é viciado e deteriorado por formação. O mal ou o bem que o PT fez à sociedade não pode ser julgado pela pulsão moral nem de um lado nem de outro. Talvez tenha sido um câncer nesse organismo, talvez tenha sigo um broto numa formação genealógica... enfim, há possibilidades de visão sobre esse fenômeno que é a nossa vida política em curso.


Minha visão, tenho consciência, poderia se dizer próxima de uma visão “de esquerda”, progressista e pode ser atacada por ter esse viés ideológico, dirão os da direita. Mas aqui vale um parêntese: ideologia, diferentemente do que pode crer o senso comum que ouviu Cazuza dizer que precisava de “uma pra viver”, não é um artefato intelectual ideal nem fundamental à vida social. Nem dos melhores. Pelo menos, não no século 21. Sempre que ouço o senso comum falar de ideologia, penso em como teríamos ganhos enormes ao nosso convívio social se as escolas ensinassem melhor a sociologia e a filosofia. 

Há injustiças e deturpações da democracia que são claras e das quais as esquerdas tem se valido frente ao povo para fazer proselitismo. A injustiça social, por si só, não dá aval irrestrito aos projetos de poder de qualquer partido que seja ou de qualquer agrupamento social.

Dito isto, reafirmo a necessidade, sim, de prevenção na aplicação de políticas públicas que promovam a justiça social e a sociabilidade.

Por sua vez, o comentário de Ingo Muller (Leia Aqui) vem de quem vive e trabalha com a comunicação empresarial, com o jornalismo corporativo e que tem o viés da formação acadêmica com uma visão hegemônica da comunicação. Muller afirma que, apesar de levantar pontos interessantes em meu artigo, eu “patinei” por desconsiderar conceitos como “broadcasting” e “linha editorial”.

Como expliquei a ele nos comentários do Facebook, uma abordagem fenomenológica da comunicação não pode partir de premissas funcionalistas, como as que consideram uma linha editorial ou uma diferenciação de conteúdo de acordo com as mídias de suporte à mensagem. Precisamos analisar melhor as máximas de Marshall Macluhan, sem descambar para esse determinismo tecnológico.  

É importante estudar e conhecer os conceitos de comunicação corporativa, do jornalismo vigente. No entanto, minha crítica está centrada no modo como os padrões, os manuais e mesmo as formações conceituais obscurecem a visão do jornalista e da opinião pública sobre os fatos sociais.

Ademais, não é de se estranhar o estranhamento com uma visão fenomenológica. Estamos acostumados em nossa formação acadêmica a incorporar tais conceitos hegemônicos. Importar teorias e técnicas de alcance de audiência. O que por si só não é algo ruim.


Heidegger rompeu com Hurssel e falou da Gerede, um "falatório", que nos tira a atenção da vida

Mas, aproveitando a oportunidade, gostaria de fazer algumas observações. Aprendi parte da minha abordagem fenomenológica no PPGCOM/UFPA, com o professor Fabio Fonseca de Castro, que hoje ocupa o cargo de professor visitante em Cambridge, a maior universidade do mundo. Muitos louvam a presença de Castro na Inglaterra, mas o que isso significa exatamente para a comunicação e o ensino da Amazônia e do Brasil?

Apesar de ele mesmo ter enfrentado resistência em sua abordagem dentro da UFPA, Castro tem ganhado notório destaque com publicações no Brasil e no exterior. Suas aplicações de conceitos da hermenêutica e da fenomenologia têm merecido olhares atentos a ponto de ter aceito o projeto que hoje apresenta na Inglaterra.

Talvez isso ainda não tenha sido suficiente para qualificar a produção jornalística de Belém e da Amazônia. Talvez. Talvez falte câmaras de reverberação desses conhecimentos. Como eu disse, a vantagem da abordagem aberta é exatamente a propensão ao diálogo. Diálogo escasso cada vez mais, mesmo entre educadores, e mais ainda entre educadores e a sociedade. 

Resumindo, acredito que a gente pode usar a inteligência fora das caixinhas dos conceitos importados e predeterminados e tentar melhorar a nossa produção e o nosso convívio social. Há uma janela aberta a uma mudança estrutural da esfera pública no Brasil, para citar Habermas. Mudança sempre lenta e gradua, mmas que poderia ser mais efetiva se a comunicação assumisse um papel de protagonismo menos viciado. Mas parece que não estamos aproveitando essa janela e ela vai se fechar em breve.

A visão fenomenológica nos confronta com a ideia de sermos agentes protagonistas de qualquer mudança que achemos necessária e capaz de executarmos. Não de seguir uma determinada linha editorial, mas de propor linhas editoriais que atendam os interesses comuns. Seja de empresários ou de cidadãos comuns.

A violência, o caos urbano, a morte, enfim, é um fator crucial a nos por diante do dilema de nossa própria existência. Não são apenas pobres que estão morrendo ou sendo assaltados. Isso deveria nos fazer pensar que talvez devêssemos abrir as nossas mentes para as mudanças necessárias. No mais, não desqualifica o pensamento dizer que ele é utópico. A vida social é feita de pensamento e ação. 

NOTA:Obviamente, o aprofundamento das reflexões abrem caminhos os mais diversos. Não há como entrar nos pormenores de todas as abordagens aqui. No meu caso, os insights surgiram quando fugi de um determinismo tecnológico ou de uma abordagem ideológica, que considero "moralista". Em parte, isso justifica algumas proposições do meu esboço de artigo, pois está centrado em uma experiência vivida. Uma experiência comum, isto é, compartilhada. 

sábado, 11 de novembro de 2017

Violência, comunicação e reflexão social


Belém está insuportável. Mas é preciso encarar os fatos e analisar a situação para encontrar saídas.

Reprodução do momento em que Daniel cai ao chão sob a mira de João

Certamente, muitos de vocês viram o vídeo do assaltante que acertou a cabeça de um jovem de 19 anos em pleno bairro nobre da cidade de Belém, à luz do dia. Mas teve gente que preferiu não ver. A imprensa não mostrou tudo porque são cenas fortes e o manual politicamente correto, a autocensura diz que é melhor não mostrar. Mas eu vi. E muita gente viu. Como muitas pessoas recebi em um grupo de whatsapp, esse aplicativo que juntamente com outras redes sociais tem ajudado a destruir com a moral da imprensa. Com raras exceções, incluindo aqueles veículos que sabem usar a ferramenta.

Este também não foi o único vídeo de violência urbana nessa semana circulando em Belém. Participo de um grupo onde realizo algumas pesquisas. Recebi na mesma semana um vídeo de um homem sendo executado em uma mesa de lanches, na rua, próximo à Casa de Shows Karibe, que fica localizada na Rod. Augusto Montenegro. Mas este vídeo não teve a mesma repercussão que o vídeo em que Daniel é atingido por João.

Muitos jornalistas defendem que a mídia não deve publicar cenas de violência e que o noticiário policial é ultrapassado e não contribui para a diminuição dessa violência, apenas para a sua difusão. Isso é coerente apenas em parte. Digo de uma análise fenomenológica (baseada na minha experiência como morador da periferia, como vítima da violência, como jornalista, como pesquisador em comunicação e estudioso dos processos de sociabilidade e comunicabilidade) que é preciso ter cuidado com as máximas morais do politicamente correto defendidas por muitos jornalistas ditos progressistas hoje em dia. É preciso muito cuidado com as armadilhas morais do pensamento.

A verdade é que não existe um motivo real, na atualidade e por si só, para impedir que certas cenas de violência sejam divulgadas e analisadas em conjunto com a sociedade. O uso sensacionalista dessas imagens nos tem privado da crítica séria em cima de fatos reais que as imagens mostram. Precisamos restringir e alertar sobre o impacto de tais cenas a pessoas com problemas e principalmente com crianças. Em muitos casos, realmente, o noticiário jornalístico deturpa a formação das crianças, e nem sempre é por causa da violência mostrada. Mas isso é outra história. Gostaria de escrever um artigo científico sobre o assunto e o farei, mas não vou esperar um ano para que as pessoas possam ter acesso à minha análise. Farei uma nota de ressalva ao final deste texto aos professores e pesquisadores.  

Dito isto, sigo minha reflexão crítica: Um vídeo em si não nos dá muita visão sobre o que é o problema da violência em Belém hoje. Fica a ideia de que há apenas um caos incompreensível e homogêneo. Mas a análise do noticiário cotidiano e, principalmente, a análise dos vídeos que são gerados espontaneamente pela população e viralizados pelas redes sociais, em conjunto com o conhecimento da nossa vivência e conhecimentos críticos, testados, pode nos dizer muito mais do que a imprensa hoje nos diz sobre a sociologia da violência em Belém.

Mas isso só poderá ser feito se tivermos um mínimo de formação sociológica e não ficarmos presos aos fundamentos jornalísticos que ainda hoje são pregados em algumas universidades.  

Vou analisar os dois vídeos sob o olhar da minha experiência de jornalista, de cidadão, de morador da periferia, de pessoa que foi assaltada muitas vezes, em uma perspectiva fenomenológica e psicanalítica (além de ter estudado e pesquisado a fenomenologia também fiz cinco anos de psicanálise e estudei nesse período o tema para contrapor as proposições do meu psicoterapeuta. Eram grandes embates).

Vou começar por descrever os vídeos.

Vídeo 01


Momento da execução na madrugada de domingo, 5, na Rod. A. Montenegro

Descrição: Um vídeo de câmera de segurança. É madrugada, está escuro. Um grupo de pessoas reunido em uma mesa em frente a um carro de lanche. O atirador surge na tela pela lateral, contorna o grupo de pessoas localizado em frente ao lanche, reconhece a vítima na mesa ao lado do carrinho de lanches, saca a arma e vai pra cima da vítima com o braço estendido em sua direção, olhar fixo, atira quatro ou cinco vezes. Nas duas últimas chega perto o suficiente para acertar a cabeça. As pessoas se espalham e depois de concluir o serviço ele sai, sem muito alarde. Não é possível ver a vítima. O vídeo acaba.


Considerações sobre o vídeo e o fato filmado:

1 -  A atirador é forte, branco e veste camisa, calça e sapatos. Não era um assaltante qualquer. Era treinado, atira com o braço estendido e olha o tempo todo para o alvo. Tem postura de atirador profissional. No Brasil, apenas policiais e agentes de segurança licenciados podem treinar essa postura, a não ser traficantes e criminosos muito equipados e que possam ter tempo e local seguro para treinar com orientação especializada. Como terroristas que foram treinados por exércitos. Não foi latrocínio, foi execução. Não sabemos as motivações de quem mata e é pouco provável de encontrar indícios disso pelo vídeo.

2 -  O vídeo foi gravado na madrugada e na periferia. Sua repercussão não foi tão grande quando o vídeo que vou analisar em seguida porque o fato é corriqueiro nessas áreas. Procurei nos jornais online e não vi. Talvez tenha saído apenas o relato no noticiário policial. A polícia não apresentou culpado, ele não foi identificado. A vítima está morta e ninguém sabe quem é. Mas não é da alta sociedade nem de classe média, certamente.

Video 02



O momento em que a vítima dá as costas ao assaltante, antes de correr
Descrição: um jovem negro segue pela calçada, para na esquina e aborda outro jovem. Põem a mão cintura em postura ameaçadora mas não saca a arma. O jovem que está sentado se levanta, contorna o rapaz, dá as costas para ele e sai correndo atravessando a rua ao mesmo tempo em que o sinal abre e os carros avançam em sua direção. O jovem negro saca a arma e o segue por dois passos e então mira de pernas abertas e braços estendidos. Depois de mirar ele atira sem virar o rosto até que o garoto caia.  Atingi a cabeça do rapaz enquanto ele está no ar, no contrapé. Ele cai no meio da pista e cara no chão. O atirador foge. Primeiro corre para uma esquina depois volta e segue pela rua pelo mesmo ligar em que veio.

Análise do fato filmado:

1 -  O atirador é negro, jovem, magro, veste chinelo, bermuda e camiseta. Sua ação não indica execução, ele não chega atirando, tenta roubar e o assalto é frustrado. Não é um assaltante experiente. Pois se fosse teria sacado a arma logo, apontando-a para o outro garoto. Isso evitaria que ele fugisse. Mas o outro garoto o afrontou, de certa forma, talvez não tivesse se sentido tão ameaçado, talvez duvidasse que o outro rapaz tivesse mesmo uma arma ou que fosse capaz de atirar. Em poucos segundos cada um deles tem que tomar uma decisão. O rapaz negro reage, frustrado, sabe que perdeu a vítima quando ela corre, frustrado e com raiva se vinga do garoto que não aceitou ser roubado, atirou nele e fugiu da cena sem levar nada. Houve um enfrentamento, mesmo fugindo, o garoto branco não aceitou a condição de assaltado. Talvez fosse apegado aos seus bens materiais, talvez achasse que não seria roubado por um jovem negro. O jovem negro talvez não tivesse a intenção inicial de matar, mas se sentiu contrariado e perdeu o controle. Quis dar uma resposta à altura.

2 -  O fato ocorreu no centro da cidade, à luz do dia. Em pouco tempo a repercussão do caso foi capaz de identificar a vítima e também o atirador. A vítima se chama Daniel e seu pai faz parte de um grupo de whatsapp chamado “estrelas do tênis”, portanto é um garoto de classe média. No dia seguinte a polícia apresentou o negro assaltante na seccional do Comércio. O caso repercute até agora.

Vamos agora a uma análise geral, com base em nossas percepções empíricas, no senso comum mas introduzindo conhecimentos críticos. A violência impera em Belém. No centro e na periferia, diria esse senso comum. É tudo a mesma coisa. Mas é muito menos comum isso acontecer no centro. Não é tudo a mesma coisa. O fato causou revolta e espanto por causa disso, mobilizou a opinião pública classe média da cidade. É verdade que assaltos acontecem com certa frequência no centro. Mas não era tão comum. Agora o fato de ser filmado deu repercussão maior, mas mesmo se não tivesse sido filmado o caso teria chamado muita atenção porque foi à luz do dia, porque foi brutal, escancarado e porque vitimou um jovem branco de classe media.

Por causa do vídeo, porém, o caso do garoto ganhou as redes sociais e continua repercutindo inclusive fora do estado. À turma do “olho por olho, dente por dente”, não quero defender o assaltante, mas a análise social é clara, brancos armados, treinados estão executando pessoas na periferia a qualquer momento. Eu fui assaltado por dois homens brancos. Eles estão invadindo a periferia para roubar. O garoto negro como mostraram os jornais veio do interior, morava no Barreiro, bairro de periferia, vizinho onde moro. Aqui há pouco tinha uma lei imposta por meio de pichações em muros e supostamente pelo Comando Vermelho: “é proibido roubar na comunidade”.

Por isso, meus vizinhos falam que os assaltantes vêm de outros lugares para roubar aqui.  Os negros pobres também estão saindo da periferia para assaltar no centro da cidade. Há uma guerra, uma guerra social que descamba para a violência, processos de higienização e revolta das classes subalternas. O fato de assaltantes estarem entrando em colégios de classe média baixa, com pouca segurança para assaltar turmas inteiras, mostra que há de certa forma um revanchismo de classe mal direcionado. O jovem negro de prenome João, tem apenas 18 anos, veio do interior e teria dito para a tia que roubaria para comprar roupas novas. Ansiava, portanto, um padrão de consumo. Um padrão que ele não tem e que quem tem um mínimo de condições hoje ostenta. O contraste gera revolta, ressentimento.

O traço de ressentimento e despreparo no assaltante negro é evidente nos vídeos como mostrei. Mas também há uma vaidade, ele era inexperiente, mas ao contrário do que disse aos repórteres, sabia o que estava fazendo quando atirou. Naquela fração de segundos ele decidiu se impor com uma arma na mão, não como homem. A ausência familiar não lhe deu referência para isso. Aprendeu nas ruas a ser iniciado, a mostrar valor pela crueldade.

O atirador branco da madrugada é profissional, frio e calculista, preparado para matar. Um profissional que não será preso e nem julgado pela justiça do Pará. O negro talvez seja preso e solto em seguida. Mas terá os dias contados. Talvez seja mais um a ser executado na periferia no mês que vem. Não podemos ter a exata certeza, mas podemos tirar mais algumas conclusões sobre as análises desses vídeos.

Antes uma observação: a análise social, sobre classes, raças, preparo ou despreparo psicológico, frieza, vaidade e ressentimento não é um julgamento moral (ou de qualquer tipo sobre os envolvidos) é uma constatação com base em indícios sociais e psicológicos, que orienta a compreensão do fato. Não podemos mais não querer ver. Precisamos acabar com essa invisibilidade. Precisamos não só ver, mas discutir, debater e procurar soluções com conhecimento que já existe para isso.

Seguem, então, minhas conclusões:

1 - A imprensa não divulgou as imagens, as câmeras oficiais também não. Ambos os vídeos foram feitos de celular filmando a televisão ou o computador que o gravou e reproduziu. Portanto, foram vídeos clandestinos, mas reais. Isso mostra que a atual comunicação sobre a violência não está sendo feita corretamente, ou a priori, pela imprensa. A imprensa nem sequer tem ajudado a difundir os vídeos porque os considera feios, indignos etc. Imprensa só divulga nota oficial da polícia e isso não é sequer jornalismo. Consequentemente, não consegue fazer a análise necessária para essa compreensão. A imprensa é moralmente cega. E porque não consegue eventualmente suspender seu julgamento moral não consegue apontar caminhos e justificá-los aos órgãos competentes, aos quais, quase sempre estão associados. Quando muito tende a se “indignar”, papel que cabe ao cidadão comum sem conhecimento para analisar os fatos.

2 -  Vê-se por outro lado que a segurança pública é frágil e o modelo vigente não garante melhoria. Mas que modelo é esse mesmo? É um modelo que não liga para a justiça social, que não se preocupa com o mais pobre e faz vistas grossas para uma classe de atiradores que supostamente faz uma higiene social na periferia. Trabalho chancelado pelo Estado omisso. Que os pobres negros estejam saindo para cometer esses tipos de crime na zona central da cidade mostra o fracasso desse modelo claramente. Não há espaços de socialização, não há programas sociais efetivos, não há punição a quem mata e quem rouba na periferia. A resposta é rápida para pobres, pretos etc. Desculpem a turma da bala, do dente por dente, mas este é um caso para discutir não direitos humanos, mas justiça social, urgentemente.

3 – Enquanto aplica esse modelo de segurança, o governo também extorque o cidadão, fazendo blitzen a torto e à direita para aumentar a sua arrecadação sem dar retorno à sociedade. Sem proteção social, ressentido, acuado, amedrontado e desinformado o cidadão não consegue compreender a sua própria realidade. Não tem forças para cobrar o próprio estado e descarrega sua raiva, muitas vezes, nas vítimas. Ou escolhe as suas vítimas: num momento é o policial que enfrenta o bandido e não pode confiar na justiça, noutro é o assaltante negro que não teve oportunidade, em alguns casos, o pobre põe a culpa até no garoto classe média que não aceitou ser roubado e não “soube se portar diante do assalto”. É cada absurdo que a gente ouve que deprime.


4 -  Finalmente, a gente precisa ter compreensão ampla e  fazer alguma coisa eficaz em mudar essa situação. Eu aceito sugestões e gostaria de trabalhar para mudar isso. 

NOTA: Os professores, pesquisadores e jornalistas estão autorizados a reproduzir o texto ou as ideias aqui expressas desde que citem a fonte. Como disse parte dessas reflexões estarão em um artigo científico a ser encaminhado a uma publicação em breve.