sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Visagens da cena musical de Belém

O rock da Norman Bates é tema de artigo publicado por mim e pelo professor Fabio Fonseca de Castro na Revista Crítica Cultura da Unisul de Santa Catarina.
Norman Bates nas ruínas do Murucutu em 2004. Foto: Leg.

    Em 2012, a revisão psicanalítica da minha trajetória profissional e afetiva coincidiu com meu contato com a fenomenologia, por meio das aulas do professor Fábio Fonseca de Castro no mestrado do PPGCOM/UFPA. Essa revisão perpassou inevitavelmente pela análise da trajetória discursiva da banda Norman Bates, da qual participei por mais de 15 anos. Tratando na minha pesquisa da cena musical paraense, em perspectiva da experiência vivida e dos estudos já realizados até então, busquei o distanciamento necessário para empreender essa análise.
     Das leituras de Freud junto à disciplina da professora Regina Lima, e do meu psicoterapeuta, veio o conceito de denegação. A ideia de denegação foi, para mim, uma revelação. Revelação que, junto com as ideias sobre o nativismo amazônico na cultura, se mostrou particularmente frutífera no estudo dos conteúdos da Norman Bates. Foi no artigo da disciplina do professor Fábio que surgiu o embrião do artigo “Visagens do Rock de Belém – Identidade assombrada e intersubjetividade em uma banda amazônica”, publicado agora pela revista Crítica Cultural da Universidade do Sul de Santa Catarina, Qualis B1, em parceria com o mesmo. Acesse AQUI
    Preciso dizer algumas coisas sobre a parte que me cabe na feitura desse artigo. Em primeiro lugar, que ele não resume nem a visada crítica da produção da Norman Bates nem a sua posição dentro da cena rock de Belém (e isto está mais ou menos claro no próprio texto). Em segundo lugar, que, considerando as origens sociais distanciadas entre eu e meu orientador (o que considero importante em uma perspectiva fenomenológica, além do distanciamento de graduação acadêmica), ele abrange perfeitamente o que considero importante em seu recorte crítico.
    Também preciso dizer que, apesar de não resumir a produção da Norman Bates, sendo apenas um recorte, espero que ele ajude a reposicioná-la na intersubjetividade da cena local, bem como seus integrantes e criadores. Apesar deste artigo tratar de uma banda de rock ele também ressalta sentimentos e percepções comuns à produção local, podendo ajudar artistas e jornalistas envoltos em recente polêmica sobre o sentido de “regional” no subgênero local “Guitarradas” a compreender melhor o seu estar no mundo, ou, quem sabe, o estar no mundo compartilhado desta cena.
  Finalmente, quem quiser compreender melhor a abordagem fenomenológica de “denegação” na cultura regional  pode ler o artigo “Identidade Denegada. Discutindo as representações e a autorrepresentação dos caboclos da Amazônia.”, de Fabio Castro, publicado na Revista da USP e acessível neste LINK

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Ideologia e comunicação no Brasil (A partir de onde estamos)

De acordo com o sistema de estatística do Google, mais de 500 pessoas leram o meu artigo sobre a violência em Belém, leia aqui. É uma audiência maior do que todos os alunos de comunicação que tive nos mais de quatro anos de docência, mesmo considerando a crise dos cursos de comunicação das últimas décadas. E, a considerar pela minha time line no Facebook, trata-se de um público qualificado. Professores, jornalistas, artistas, estudantes de comunicação, arte e filosofia, entre outros. 


Apesar dessa audiência recorde no blog, pouca gente comentou o artigo. Apenas duas pessoas, na verdade. A Daely Cunha, jornalista paraense que mora atualmente no Espírito Santo, e o editor do site de notícias G1 Pará, Ingo Muller. Como são importantes formadores de opinião, eu gostaria de repercutir aqui os comentários de ambos, que, de antemão agradeço a coragem e disposição para o debate. Vejo muitas pessoas no Facebook mandando indiretas sobre entrar em "tretas", marca típica de um tempo de pessoas que não aprenderam que a vida social exige conversas nem sempre agradáveis. Ou de gente cansada pelo tempo de tantas polêmicas.  

Vale dizer que, a despeito da diferença de opiniões, é muito bom e louvável que ambos tenham se disposto ao diálogo, pois a intenção de uma abordagem fenomenológica é exatamente promover um debate, abrindo os conceitos predeterminados à nossa avaliação conjunta, crítica. Se conseguirmos ao menos em parte promover essa abertura já teremos um ganho considerável.

Primeiro, a Daely fez uma crítica severa à proposição de que o agressor negro no primeiro vídeo que analisei seja um “garoto” e mereça piedade ou complacência (veja os comentários dela aqui). Fez várias considerações sobre projetos de ressocialização, mas enfatizou que o mesmo tem que sofrer drasticamente as consequências de seus atos. Em seus comentários transbordou um forte viés ideológico na expressão “esquerdalha” e na citação do PT. Viés ideológico e afetivo. É o que poderia chamar, de acordo com as observações preliminares do outro artigo, de "pulsão moral". 

Sobre isso, vale dizer que em nenhum momento eu defendi o alívio de pena sobre qualquer dos infratores citados no artigo. Apesar de Daely não fazer nenhuma citação ao atirador executor branco, nem ele nem o jovem assaltante devem, perante a lei, ter qualquer alívio de pena, a meu ver. Nas prisões, porém, poderia haver trabalho que justificasse o dinheiro investigo em segurança e quem sabe o retorno desse dinheiro. Daely falou sobre a "Fábrica Esperança". Quem tiver mais detalhes sobre o projeto poderia encaminhar para o blog. Deveríamos cobrar isso e acompanhar um projeto como esse. 

Mas, sobre essa divisão ideológica, é preciso dizer que é um problema crônico do Brasil, pelo qual são tão responsáveis aqueles que se dizem de esquerda, quando aqueles que defendem os princípios conservadores da elite nacional. Ao que parece hoje o Brasil é um projeto inacabado de nação que não comporta as diferenças de sua formação étnica, cultural e social. Mas, em se tratando de poder político, não tem como negar que há uma elite conservadora que golpeou fortemente o esboço de democracia até então vigente. É preciso conciliar esses vieses ideológicos nas soluções práticas para os nossos problemas. Ou então, vamos logo à guerra!


Hurssel declarou crise nas ciências europeias ao propor uma fenomenologia transcendental


O PT aparelhou o estado e minou a capacidade de organização da sociedade civil no estamento inferior (e maior) da sociedade brasileira. Não inventou a corrupção e nem a elevou aos maiores patamares, na minha opinião. Simplesmente porque a política de compadrio, de autoritarismos de classe, preconceituosa e perversa que aqui impera não é, nem nunca foi, considerada "corrupção" porque faz parte da gênese fisiológica do Estado brasileiro.  Não se pode enxergar corrupção de dentro de um organismo que na sua própria consistência é viciado e deteriorado por formação. O mal ou o bem que o PT fez à sociedade não pode ser julgado pela pulsão moral nem de um lado nem de outro. Talvez tenha sido um câncer nesse organismo, talvez tenha sigo um broto numa formação genealógica... enfim, há possibilidades de visão sobre esse fenômeno que é a nossa vida política em curso.


Minha visão, tenho consciência, poderia se dizer próxima de uma visão “de esquerda”, progressista e pode ser atacada por ter esse viés ideológico, dirão os da direita. Mas aqui vale um parêntese: ideologia, diferentemente do que pode crer o senso comum que ouviu Cazuza dizer que precisava de “uma pra viver”, não é um artefato intelectual ideal nem fundamental à vida social. Nem dos melhores. Pelo menos, não no século 21. Sempre que ouço o senso comum falar de ideologia, penso em como teríamos ganhos enormes ao nosso convívio social se as escolas ensinassem melhor a sociologia e a filosofia. 

Há injustiças e deturpações da democracia que são claras e das quais as esquerdas tem se valido frente ao povo para fazer proselitismo. A injustiça social, por si só, não dá aval irrestrito aos projetos de poder de qualquer partido que seja ou de qualquer agrupamento social.

Dito isto, reafirmo a necessidade, sim, de prevenção na aplicação de políticas públicas que promovam a justiça social e a sociabilidade.

Por sua vez, o comentário de Ingo Muller (Leia Aqui) vem de quem vive e trabalha com a comunicação empresarial, com o jornalismo corporativo e que tem o viés da formação acadêmica com uma visão hegemônica da comunicação. Muller afirma que, apesar de levantar pontos interessantes em meu artigo, eu “patinei” por desconsiderar conceitos como “broadcasting” e “linha editorial”.

Como expliquei a ele nos comentários do Facebook, uma abordagem fenomenológica da comunicação não pode partir de premissas funcionalistas, como as que consideram uma linha editorial ou uma diferenciação de conteúdo de acordo com as mídias de suporte à mensagem. Precisamos analisar melhor as máximas de Marshall Macluhan, sem descambar para esse determinismo tecnológico.  

É importante estudar e conhecer os conceitos de comunicação corporativa, do jornalismo vigente. No entanto, minha crítica está centrada no modo como os padrões, os manuais e mesmo as formações conceituais obscurecem a visão do jornalista e da opinião pública sobre os fatos sociais.

Ademais, não é de se estranhar o estranhamento com uma visão fenomenológica. Estamos acostumados em nossa formação acadêmica a incorporar tais conceitos hegemônicos. Importar teorias e técnicas de alcance de audiência. O que por si só não é algo ruim.


Heidegger rompeu com Hurssel e falou da Gerede, um "falatório", que nos tira a atenção da vida

Mas, aproveitando a oportunidade, gostaria de fazer algumas observações. Aprendi parte da minha abordagem fenomenológica no PPGCOM/UFPA, com o professor Fabio Fonseca de Castro, que hoje ocupa o cargo de professor visitante em Cambridge, a maior universidade do mundo. Muitos louvam a presença de Castro na Inglaterra, mas o que isso significa exatamente para a comunicação e o ensino da Amazônia e do Brasil?

Apesar de ele mesmo ter enfrentado resistência em sua abordagem dentro da UFPA, Castro tem ganhado notório destaque com publicações no Brasil e no exterior. Suas aplicações de conceitos da hermenêutica e da fenomenologia têm merecido olhares atentos a ponto de ter aceito o projeto que hoje apresenta na Inglaterra.

Talvez isso ainda não tenha sido suficiente para qualificar a produção jornalística de Belém e da Amazônia. Talvez. Talvez falte câmaras de reverberação desses conhecimentos. Como eu disse, a vantagem da abordagem aberta é exatamente a propensão ao diálogo. Diálogo escasso cada vez mais, mesmo entre educadores, e mais ainda entre educadores e a sociedade. 

Resumindo, acredito que a gente pode usar a inteligência fora das caixinhas dos conceitos importados e predeterminados e tentar melhorar a nossa produção e o nosso convívio social. Há uma janela aberta a uma mudança estrutural da esfera pública no Brasil, para citar Habermas. Mudança sempre lenta e gradua, mmas que poderia ser mais efetiva se a comunicação assumisse um papel de protagonismo menos viciado. Mas parece que não estamos aproveitando essa janela e ela vai se fechar em breve.

A visão fenomenológica nos confronta com a ideia de sermos agentes protagonistas de qualquer mudança que achemos necessária e capaz de executarmos. Não de seguir uma determinada linha editorial, mas de propor linhas editoriais que atendam os interesses comuns. Seja de empresários ou de cidadãos comuns.

A violência, o caos urbano, a morte, enfim, é um fator crucial a nos por diante do dilema de nossa própria existência. Não são apenas pobres que estão morrendo ou sendo assaltados. Isso deveria nos fazer pensar que talvez devêssemos abrir as nossas mentes para as mudanças necessárias. No mais, não desqualifica o pensamento dizer que ele é utópico. A vida social é feita de pensamento e ação. 

NOTA:Obviamente, o aprofundamento das reflexões abrem caminhos os mais diversos. Não há como entrar nos pormenores de todas as abordagens aqui. No meu caso, os insights surgiram quando fugi de um determinismo tecnológico ou de uma abordagem ideológica, que considero "moralista". Em parte, isso justifica algumas proposições do meu esboço de artigo, pois está centrado em uma experiência vivida. Uma experiência comum, isto é, compartilhada. 

sábado, 11 de novembro de 2017

Violência, comunicação e reflexão social


Belém está insuportável. Mas é preciso encarar os fatos e analisar a situação para encontrar saídas.

Reprodução do momento em que Daniel cai ao chão sob a mira de João

Certamente, muitos de vocês viram o vídeo do assaltante que acertou a cabeça de um jovem de 19 anos em pleno bairro nobre da cidade de Belém, à luz do dia. Mas teve gente que preferiu não ver. A imprensa não mostrou tudo porque são cenas fortes e o manual politicamente correto, a autocensura diz que é melhor não mostrar. Mas eu vi. E muita gente viu. Como muitas pessoas recebi em um grupo de whatsapp, esse aplicativo que juntamente com outras redes sociais tem ajudado a destruir com a moral da imprensa. Com raras exceções, incluindo aqueles veículos que sabem usar a ferramenta.

Este também não foi o único vídeo de violência urbana nessa semana circulando em Belém. Participo de um grupo onde realizo algumas pesquisas. Recebi na mesma semana um vídeo de um homem sendo executado em uma mesa de lanches, na rua, próximo à Casa de Shows Karibe, que fica localizada na Rod. Augusto Montenegro. Mas este vídeo não teve a mesma repercussão que o vídeo em que Daniel é atingido por João.

Muitos jornalistas defendem que a mídia não deve publicar cenas de violência e que o noticiário policial é ultrapassado e não contribui para a diminuição dessa violência, apenas para a sua difusão. Isso é coerente apenas em parte. Digo de uma análise fenomenológica (baseada na minha experiência como morador da periferia, como vítima da violência, como jornalista, como pesquisador em comunicação e estudioso dos processos de sociabilidade e comunicabilidade) que é preciso ter cuidado com as máximas morais do politicamente correto defendidas por muitos jornalistas ditos progressistas hoje em dia. É preciso muito cuidado com as armadilhas morais do pensamento.

A verdade é que não existe um motivo real, na atualidade e por si só, para impedir que certas cenas de violência sejam divulgadas e analisadas em conjunto com a sociedade. O uso sensacionalista dessas imagens nos tem privado da crítica séria em cima de fatos reais que as imagens mostram. Precisamos restringir e alertar sobre o impacto de tais cenas a pessoas com problemas e principalmente com crianças. Em muitos casos, realmente, o noticiário jornalístico deturpa a formação das crianças, e nem sempre é por causa da violência mostrada. Mas isso é outra história. Gostaria de escrever um artigo científico sobre o assunto e o farei, mas não vou esperar um ano para que as pessoas possam ter acesso à minha análise. Farei uma nota de ressalva ao final deste texto aos professores e pesquisadores.  

Dito isto, sigo minha reflexão crítica: Um vídeo em si não nos dá muita visão sobre o que é o problema da violência em Belém hoje. Fica a ideia de que há apenas um caos incompreensível e homogêneo. Mas a análise do noticiário cotidiano e, principalmente, a análise dos vídeos que são gerados espontaneamente pela população e viralizados pelas redes sociais, em conjunto com o conhecimento da nossa vivência e conhecimentos críticos, testados, pode nos dizer muito mais do que a imprensa hoje nos diz sobre a sociologia da violência em Belém.

Mas isso só poderá ser feito se tivermos um mínimo de formação sociológica e não ficarmos presos aos fundamentos jornalísticos que ainda hoje são pregados em algumas universidades.  

Vou analisar os dois vídeos sob o olhar da minha experiência de jornalista, de cidadão, de morador da periferia, de pessoa que foi assaltada muitas vezes, em uma perspectiva fenomenológica e psicanalítica (além de ter estudado e pesquisado a fenomenologia também fiz cinco anos de psicanálise e estudei nesse período o tema para contrapor as proposições do meu psicoterapeuta. Eram grandes embates).

Vou começar por descrever os vídeos.

Vídeo 01


Momento da execução na madrugada de domingo, 5, na Rod. A. Montenegro

Descrição: Um vídeo de câmera de segurança. É madrugada, está escuro. Um grupo de pessoas reunido em uma mesa em frente a um carro de lanche. O atirador surge na tela pela lateral, contorna o grupo de pessoas localizado em frente ao lanche, reconhece a vítima na mesa ao lado do carrinho de lanches, saca a arma e vai pra cima da vítima com o braço estendido em sua direção, olhar fixo, atira quatro ou cinco vezes. Nas duas últimas chega perto o suficiente para acertar a cabeça. As pessoas se espalham e depois de concluir o serviço ele sai, sem muito alarde. Não é possível ver a vítima. O vídeo acaba.


Considerações sobre o vídeo e o fato filmado:

1 -  A atirador é forte, branco e veste camisa, calça e sapatos. Não era um assaltante qualquer. Era treinado, atira com o braço estendido e olha o tempo todo para o alvo. Tem postura de atirador profissional. No Brasil, apenas policiais e agentes de segurança licenciados podem treinar essa postura, a não ser traficantes e criminosos muito equipados e que possam ter tempo e local seguro para treinar com orientação especializada. Como terroristas que foram treinados por exércitos. Não foi latrocínio, foi execução. Não sabemos as motivações de quem mata e é pouco provável de encontrar indícios disso pelo vídeo.

2 -  O vídeo foi gravado na madrugada e na periferia. Sua repercussão não foi tão grande quando o vídeo que vou analisar em seguida porque o fato é corriqueiro nessas áreas. Procurei nos jornais online e não vi. Talvez tenha saído apenas o relato no noticiário policial. A polícia não apresentou culpado, ele não foi identificado. A vítima está morta e ninguém sabe quem é. Mas não é da alta sociedade nem de classe média, certamente.

Video 02



O momento em que a vítima dá as costas ao assaltante, antes de correr
Descrição: um jovem negro segue pela calçada, para na esquina e aborda outro jovem. Põem a mão cintura em postura ameaçadora mas não saca a arma. O jovem que está sentado se levanta, contorna o rapaz, dá as costas para ele e sai correndo atravessando a rua ao mesmo tempo em que o sinal abre e os carros avançam em sua direção. O jovem negro saca a arma e o segue por dois passos e então mira de pernas abertas e braços estendidos. Depois de mirar ele atira sem virar o rosto até que o garoto caia.  Atingi a cabeça do rapaz enquanto ele está no ar, no contrapé. Ele cai no meio da pista e cara no chão. O atirador foge. Primeiro corre para uma esquina depois volta e segue pela rua pelo mesmo ligar em que veio.

Análise do fato filmado:

1 -  O atirador é negro, jovem, magro, veste chinelo, bermuda e camiseta. Sua ação não indica execução, ele não chega atirando, tenta roubar e o assalto é frustrado. Não é um assaltante experiente. Pois se fosse teria sacado a arma logo, apontando-a para o outro garoto. Isso evitaria que ele fugisse. Mas o outro garoto o afrontou, de certa forma, talvez não tivesse se sentido tão ameaçado, talvez duvidasse que o outro rapaz tivesse mesmo uma arma ou que fosse capaz de atirar. Em poucos segundos cada um deles tem que tomar uma decisão. O rapaz negro reage, frustrado, sabe que perdeu a vítima quando ela corre, frustrado e com raiva se vinga do garoto que não aceitou ser roubado, atirou nele e fugiu da cena sem levar nada. Houve um enfrentamento, mesmo fugindo, o garoto branco não aceitou a condição de assaltado. Talvez fosse apegado aos seus bens materiais, talvez achasse que não seria roubado por um jovem negro. O jovem negro talvez não tivesse a intenção inicial de matar, mas se sentiu contrariado e perdeu o controle. Quis dar uma resposta à altura.

2 -  O fato ocorreu no centro da cidade, à luz do dia. Em pouco tempo a repercussão do caso foi capaz de identificar a vítima e também o atirador. A vítima se chama Daniel e seu pai faz parte de um grupo de whatsapp chamado “estrelas do tênis”, portanto é um garoto de classe média. No dia seguinte a polícia apresentou o negro assaltante na seccional do Comércio. O caso repercute até agora.

Vamos agora a uma análise geral, com base em nossas percepções empíricas, no senso comum mas introduzindo conhecimentos críticos. A violência impera em Belém. No centro e na periferia, diria esse senso comum. É tudo a mesma coisa. Mas é muito menos comum isso acontecer no centro. Não é tudo a mesma coisa. O fato causou revolta e espanto por causa disso, mobilizou a opinião pública classe média da cidade. É verdade que assaltos acontecem com certa frequência no centro. Mas não era tão comum. Agora o fato de ser filmado deu repercussão maior, mas mesmo se não tivesse sido filmado o caso teria chamado muita atenção porque foi à luz do dia, porque foi brutal, escancarado e porque vitimou um jovem branco de classe media.

Por causa do vídeo, porém, o caso do garoto ganhou as redes sociais e continua repercutindo inclusive fora do estado. À turma do “olho por olho, dente por dente”, não quero defender o assaltante, mas a análise social é clara, brancos armados, treinados estão executando pessoas na periferia a qualquer momento. Eu fui assaltado por dois homens brancos. Eles estão invadindo a periferia para roubar. O garoto negro como mostraram os jornais veio do interior, morava no Barreiro, bairro de periferia, vizinho onde moro. Aqui há pouco tinha uma lei imposta por meio de pichações em muros e supostamente pelo Comando Vermelho: “é proibido roubar na comunidade”.

Por isso, meus vizinhos falam que os assaltantes vêm de outros lugares para roubar aqui.  Os negros pobres também estão saindo da periferia para assaltar no centro da cidade. Há uma guerra, uma guerra social que descamba para a violência, processos de higienização e revolta das classes subalternas. O fato de assaltantes estarem entrando em colégios de classe média baixa, com pouca segurança para assaltar turmas inteiras, mostra que há de certa forma um revanchismo de classe mal direcionado. O jovem negro de prenome João, tem apenas 18 anos, veio do interior e teria dito para a tia que roubaria para comprar roupas novas. Ansiava, portanto, um padrão de consumo. Um padrão que ele não tem e que quem tem um mínimo de condições hoje ostenta. O contraste gera revolta, ressentimento.

O traço de ressentimento e despreparo no assaltante negro é evidente nos vídeos como mostrei. Mas também há uma vaidade, ele era inexperiente, mas ao contrário do que disse aos repórteres, sabia o que estava fazendo quando atirou. Naquela fração de segundos ele decidiu se impor com uma arma na mão, não como homem. A ausência familiar não lhe deu referência para isso. Aprendeu nas ruas a ser iniciado, a mostrar valor pela crueldade.

O atirador branco da madrugada é profissional, frio e calculista, preparado para matar. Um profissional que não será preso e nem julgado pela justiça do Pará. O negro talvez seja preso e solto em seguida. Mas terá os dias contados. Talvez seja mais um a ser executado na periferia no mês que vem. Não podemos ter a exata certeza, mas podemos tirar mais algumas conclusões sobre as análises desses vídeos.

Antes uma observação: a análise social, sobre classes, raças, preparo ou despreparo psicológico, frieza, vaidade e ressentimento não é um julgamento moral (ou de qualquer tipo sobre os envolvidos) é uma constatação com base em indícios sociais e psicológicos, que orienta a compreensão do fato. Não podemos mais não querer ver. Precisamos acabar com essa invisibilidade. Precisamos não só ver, mas discutir, debater e procurar soluções com conhecimento que já existe para isso.

Seguem, então, minhas conclusões:

1 - A imprensa não divulgou as imagens, as câmeras oficiais também não. Ambos os vídeos foram feitos de celular filmando a televisão ou o computador que o gravou e reproduziu. Portanto, foram vídeos clandestinos, mas reais. Isso mostra que a atual comunicação sobre a violência não está sendo feita corretamente, ou a priori, pela imprensa. A imprensa nem sequer tem ajudado a difundir os vídeos porque os considera feios, indignos etc. Imprensa só divulga nota oficial da polícia e isso não é sequer jornalismo. Consequentemente, não consegue fazer a análise necessária para essa compreensão. A imprensa é moralmente cega. E porque não consegue eventualmente suspender seu julgamento moral não consegue apontar caminhos e justificá-los aos órgãos competentes, aos quais, quase sempre estão associados. Quando muito tende a se “indignar”, papel que cabe ao cidadão comum sem conhecimento para analisar os fatos.

2 -  Vê-se por outro lado que a segurança pública é frágil e o modelo vigente não garante melhoria. Mas que modelo é esse mesmo? É um modelo que não liga para a justiça social, que não se preocupa com o mais pobre e faz vistas grossas para uma classe de atiradores que supostamente faz uma higiene social na periferia. Trabalho chancelado pelo Estado omisso. Que os pobres negros estejam saindo para cometer esses tipos de crime na zona central da cidade mostra o fracasso desse modelo claramente. Não há espaços de socialização, não há programas sociais efetivos, não há punição a quem mata e quem rouba na periferia. A resposta é rápida para pobres, pretos etc. Desculpem a turma da bala, do dente por dente, mas este é um caso para discutir não direitos humanos, mas justiça social, urgentemente.

3 – Enquanto aplica esse modelo de segurança, o governo também extorque o cidadão, fazendo blitzen a torto e à direita para aumentar a sua arrecadação sem dar retorno à sociedade. Sem proteção social, ressentido, acuado, amedrontado e desinformado o cidadão não consegue compreender a sua própria realidade. Não tem forças para cobrar o próprio estado e descarrega sua raiva, muitas vezes, nas vítimas. Ou escolhe as suas vítimas: num momento é o policial que enfrenta o bandido e não pode confiar na justiça, noutro é o assaltante negro que não teve oportunidade, em alguns casos, o pobre põe a culpa até no garoto classe média que não aceitou ser roubado e não “soube se portar diante do assalto”. É cada absurdo que a gente ouve que deprime.


4 -  Finalmente, a gente precisa ter compreensão ampla e  fazer alguma coisa eficaz em mudar essa situação. Eu aceito sugestões e gostaria de trabalhar para mudar isso. 

NOTA: Os professores, pesquisadores e jornalistas estão autorizados a reproduzir o texto ou as ideias aqui expressas desde que citem a fonte. Como disse parte dessas reflexões estarão em um artigo científico a ser encaminhado a uma publicação em breve. 

terça-feira, 31 de outubro de 2017

Gêneros musicais do Pará: Guitarradas




Dando sequência ao projeto Cenas Musicais de Belém do Pará vou ministrar aula/palestra hoje no Centur sobre a Cena das Guitarradas. Quase tão cult e pop quanto o carimbó, as guitarradas (ou "a guitarrada") são um gênero de musica instrumental paraense nascido com Mestre Vieira e mantido por uma sequência de “guitar heroes” como Aldo Sena, Solano, Chimbinha, Pio Lobato, Lucas Estrela e outros.  Neste “capítulo”, vamos discutir cena cultural também como conceito, e nativismo paraense como soft power, mas principalmente o modo como os gêneros musicais se formam e se estabelecem. Vamos apresentar questões estéticas e econômicas que permeiam essa cena musical, baseado em observações minhas e de autores como Pio Lobato, Fabio Castro e Jeder Janotti Jr. Vai ser às 14h no auditório da Fonoteca Satyro de Melo, no terceiro andar do Centur. Entrada franca e eu espero você por lá. 

Após a palestra, vou reencontrar um velho amigo, com quem toquei na época do Coletivo Rádio Cipó: o roqueiro Mestre Laurentino, que fará uma apresentação musical no mesmo auditório acompanha de MG Calibre e Henrique Senna. Imperdível. 
  

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Convidado no Linha de Tiro, de Carlos Mendes

      Na próxima quinta-feira, dia 26, vou visitar o amigo Carlos Mendes. Jornalista, correspondente do Estado de São Paulo e d'O Correio, de Carajás, blogueiro e ferrenho militante do jornalismo como vocação. Mendes estreou na semana passada o programa Linha de Tiro, transmitido pelo Facebook e postado nas redes sociais, em que discute segurança pública, política, saúde, educação e meio ambiente, entre outros temas. O convite surgiu depois do assalto que relatei neste blog no dia 18 passado. Participa do programa também o historiador Elson Monteiro. É uma boa oportunidade de discutir nossos problemas e abrir um debate mais do que necessário. Por isso colaboro com todo carinho e entusiamo com essa iniciativa. Convido a todos a assistirem à transmissão ao vivo pelo perfil do Ver-O-Fato no Facebook, quinta às 20h. Segue o endereço do perfil:


Abaixo a chamada gravada por Mendes:

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Mudança de hábito: duas posturas diante do Estado

Hoje de manhã decidi ir caminhar novamente depois do assalto do dia 18. Em vez de sair de casa andando, com o celular na mão, peguei o velho celtinha prata e fui de carro até a Praça Eduardo Angelim, na Pedreira, e de lá fui caminhando pela Antonio Everdosa. No meio do caminho encontrei o Nonato. Ele estava capinando o canteiro central da rua. Em pleno sol, no dia do feriado dos comerciários, ele já tinha capinado uns 30 metros. Quando passei, falei: “A Prefeitura não trabalha, não é mesmo, meu amigo?” Ele respondeu de bate pronto: “A gente que tem que fazer o trabalho do Zenada”. Fazendo menção ao nome do prefeito Zenaldo Coutinho.

Raimundo Nonato dos Santos, 53 anos, comerciária faz o trabalho da PMB.


Depois da caminhada, peguei o celular no carro e fui entrevistar Raimundo Nonato do Santos, 53, comerciário que trabalha há 33 anos na loja Y. Yamada. Nonato contou que todo ano, antes do Círio, a Prefeitura costuma passar para “dar aquela maquiada na cidade”. Mas este nem isso ela fez. Nonato decidiu então ele mesmo por a mão na massa. Disse que fazia aquilo em benefício do pai, que mora em frente ao trecho do canteiro central em que ele trabalhava e dos vizinhos. Ele mesmo não mora mais na Antonio Everdosa há oito anos.  Mudou-se com a esposa para a Enéas Pinheiro, a 40 metros da casa do pai.

Nonato chamou os vizinhos para a empreitada. Disseram que aquilo não era trabalho dele, nem deles, era da prefeitura e caçoaram dele. “Eu disse que se a Prefeitura não faz a gente não pode deixar desse jeito. Mas agora mesmo dois vizinhos já passaram aqui e ficaram gozando com a minha cara. Disse que se eles não ajudam pelo menos não deveriam encarnar”, contou.

O comerciário não liga para as brincadeiras, mas se espanta com certas reações. Ele começou o trabalho ontem, no domingo. Deixou o mato e o lixo tirados na lateral. Depois de capinar, o dono de um carro de mão de madeira (desses grandes que esses carregadores conduzem pela periferia carregando lixo da frente das casas para terrenos baldios e esquinas cheias de entulho que semanalmente a Prefeitura recolhe) passou em sua casa. Bateu lá e mandou chamá-lo. O homem disse que levaria o lixo por apenas R$ 10.

“Achei abusado. Eu disse para ele que eu não morava lá em frente ao canteiro central e que ele deveria ter pedido para os donos das casas de lá. Pois veja, que os vizinhos indicaram a minha casa para que ele fosse oferecer o serviço lá, mesmo eu não morando na rua. Quando fui fazer o trabalho pedi que os vizinhos colaborassem ao menos com R$ 10 cada um, que eu chamaria uns amigos da igreja onde congrego para eles ajudarem”, contou ele, que frequenta a Quadrangular no mesmo quarteirão.

“Se ele [o carregador] aparecer hoje, deixa que eu mesmo vou de porta em porta com ele pedir que os vizinhos paguem o serviço dele”, finalizou.

A. Everdosa com Enéas Pinheiro, na Pedreira, onde a PMB não aparece. 

Corta a cena. Ontem, domingo, na Praça da República um colega professor de música me encontrou e contei do assalto, ele, por sua vez, contou a seguinte história. Muito tempo subempregado, ele foi aprovado no último processo seletivo da Secretaria Estadual de Educação, e está dando aula. Contou que estava com a licença da moto vencida e foi parado em uma blitz. Teve que deixar R$ 100 de propina para o guarda para ser liberado.  “Achei caro para uma moto”, disse ele.

Sem nenhuma cerimônia, Aluísio (nome fictício) contou que pegou um case de violão vazio e foi para a sala de aula e roubou um dos 11 violões novos que a escola tinha. Vendeu por R$ 150. “O Estado quer me roubar?! Então, tá”, disse ele a guisa de justificativa.

Esse é o estado de coisa do meu Brasil varonil hoje em dia.



sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Repercussão: o grito e o baque secos na periferia

De acordo com o sistema de estatísticas do Google, 208 pessoas leram meu post sobre o assalto na 3 de Outubro até o momento que escrevo este segundo post. Apesar do número não ser muito grande também não é desprezível no contexto local. Apesar de não haver nenhum comentário no blog, posso dizer que jornalistas e pessoas com alguma influência na política da cidade leram o texto. O jornalista Carlos Mendes, do Ver-O-Fato, por exemplo, foi um deles. Mendes, gentilmente, reproduziu meu texto, o que deve ter aumentado bastante a audiência do relato. Alguns colegas e amigos manifestaram solidariedade, destaco o Marcelo Gabbay, de São Paulo, a Anete Pitão, que enviou uma carinhosa mensagem de voz pelo whatsapp do Rio de Janeiro. Enize Vidigal e Aline Brelaz manifestaram sua solidariedade no post do Carlos Mendes no Facebook, e Daely Cunha, que hoje mora no Espírito Santo manifestou, além da solidariedade, sua indignação e revolta com o estado de coisas no Pará. Cada um com seu olhar, como tem que ser entre os comuns, com diferenças.

Hoje de manhã em frente à DRCO. Repare o detalhe da cadeirante. Não viu?

Minha eterna vizinha amiga, da época que morava na Vila D. Luiz, lá no Telégrafo, Elizabeth Maciel também manifestou carinho por mim, assim como a minha vizinha e amiga atual, Betânia Galiza, que também informou que bandidos de moto e armados vêm atuando recentemente na área já tem um tempo. Agradeço a esses e a todos os outros amigos e colegas que manifestaram diretamente sua solidariedade. Um velho amigo da universidade me ligou quase de madrugada dizendo que ouviu falar no meu relato. Perguntou, brincando, se era verdade o que eu tinha narrado ou se tinha inventado tudo. Eu disse, brincando, que havia inventado tudo para que os amigos lembrassem de mim e me ligassem.

 Brincadeiras a parte, acredito que também posso ter influenciado ao menos mais um “digital influencer”. O amigo Anderson Araújo (Aderson Jor para os íntimos de Facebook), que atualmente mora em Altamira e é assessor de comunicação na Norte Engenharia, empresa responsável pela construção, manutenção da Hidrelétrica de Belo Monte e suas obras de redução de impacto social e ambiental.  Anderson, porém, não me enviou mensagens de solidariedade nem publicamente nem de forma privada. Anderson é um amigo querido. Fomos colegas no jornal Diário do Pará. Dos meus amigos jornalistas é dos que já vieram em minha casa nas quebradas da Sacramenta. Foi uma única vez, há alguns anos, quando de visita a Belém veio jantar em casa com alguns outros amigos. Anderson se criou na Pedreira, bairro vizinho ao meu. Onde também tenho amigos. Às vezes tomo uma nos espetinhos e bares da Antonio Everdosa, rua do Cabo Leno, um dos policiais acusados de fazer parte de uma milícia, cujo endereço foi publicado juntamente com o mandado de prisão de mais alguns policiais pelo colega Carlos Mendes em seu blog.

Anderson é, por assim dizer, uma celebridade local.  Foi indicado ao Prêmio Fiepa de Jornalismo esse ano pelos comentários que posta em seu perfil no Facebook, cheios de tiradas de humor e de insights criativos e críticos sobre a política nacional, comportamento, moda, enfim, de quase um tudo, como diz o caboco aqui da Sacramenta. Olha o que Anderson escreveu em seu perfil poucas horas depois que Carlos Mendes republicou meu relato sobre o assalto:

“Acho que não vale a pena mais gastar uma linha de textão sobre a situação política do Brasil. Tem que entregar na mão dessa galera que acha que tá bom, que acha que fez a coisa certa, e cada um cuidar da sua sobrevivência.
Que se foda a porra toda.”

Tive a impressão que Anderson (se eu estiver enganado ele pode me corrigir, tranquilamente) se deixou influenciar por um dos pontos do meu texto no blog em que digo que escrever “textão” no Facebook é “hipocrisia, falta do que fazer ou não resolve nada mesmo”. Foi dito assim mesmo, de forma agressiva, dada o calor da hora em que o texto foi escrito. É o que pensava na naquela hora e é o que tendo a pensar. Mas mudei de ideia por causa do assalto. Mas ressalvei que me incomoda ver todo mundo falando sobre política nacional e esquecendo de problemas que parecem “pequenos” no nosso cotidiano. Mesmo que eu não tenha influenciado Anderson, ele já é uma figura pública e podemos discutir seus comentários para compreender alguma coisa sobre esfera pública.

Veja que, algumas horas depois, Anderson teve a infelicidade de ter a notícia de uma vizinha de sua família no bairro da Pedreira assassinada na porta da casa dela. Parece uma ironia cruel do destino. Anderson mandou “cada um cuidar da sua sobrevivência”. Como se já não fosse assim, no nosso dia a dia, independente da ladroagem de Brasília, não é mesmo? Por um momento me pareceu que esse negócio de digital influencer subiu à cabeça do meu amigo Anderson e ele realmente achou que suas críticas bem humoradas dentro do Facebook contribuem verdadeiramente para a mudança da realidade de alguém. O destino trágico da vizinha de Anderson (podia ser eu, podia ser a mãe dele, podia ser qualquer um de nós) o fez começar o post seguinte da seguinte forma:

“A violência extrema de Belém a duas casas de onde mora minha família e me sinto na obrigação de escrever esse relato, a morte da dona Deja.”

Não, não fui eu que influenciei Anderson, com minhas possíveis indiretas, a se sentir obrigado a escrever sobre a violência a duas casas da sua. Foi a triste realidade física, próxima de sua família. Uma tristeza enorme que compartilho com Anderson e todas as famílias de todas as vítimas de violência em Belém e em qualquer lugar do mundo, inclusive na Somália.

Não podemos (aliás, por isso mesmo não devemos) ignorar nossos problemas cotidianos. É por isso que estou escrevendo novamente esse textão. É uma obrigação comum. Esses eventos me dão a oportunidade de esclarecer minha visão sobre a ideia de agendamento da mídia nacional que nos faz discutir política e não discutir segurança, saneamento, educação na escola do nosso filho etc.

Vamos lá: existe uma teoria do jornalismo que os brasileiros traduziram exatamente como teoria do agendamento. Ela se traduz de forma simplória (como várias das ditas “teorias” do jornalismo) em que a imprensa pauta a vida cotidiana das pessoas, suas conversas e parte de suas ações. Parece óbvio, né? O papo sobre o futebol no trabalho, as conversas de Facebook sobre o julgamento do Lula e/ou a votação do Aécio. É normal termos conversa comum para por em dia.

Ocorre que posso cruzar esse agendamento com a teoria do espetáculo (muitos pensadores do jornalismo também já fizeram essa associação, isso não é novidade para os colegas de profissão que estudaram na faculdade, mas vou resumir). O espetáculo lhe prende a atenção e desvia seu olhar. Mesmo que você discorde da votação, mesmo que você tenha uma opinião muito crítica sobre esses temas, suas atenções estão voltadas para um ponto do “palco”, onde o “mágico” faz seus malabarismos, e você esquece de olhar para onde o truque é realmente armado, atrás das cortinas, embaixo da mesa, na cartola do mágico. É uma cortina de fumaça. Tente transferir essa analogia para a vida social.

Detalhe de segurança pública: Ciclista e cadeirante na pista, carros na calçada


É no cotidiano onde as coisas acontecem. Ninguém está dizendo que não há corrupção política e que não é importante combatê-la. Estamos buscando uma solução efetiva, no entanto. Toda corrupção política tem como base o desvio de dinheiro público. Dinheiro arrecadado do contribuinte, do cidadão comum e dos agentes produtivos, empresários, profissionais liberais, trabalhadores, enfim. O processo de arrecadação faz parte de um pacto social em que o Estado se compromete a aplicar esse dinheiro sob princípios de transparência, legalidade, eficácia, impessoalidade etc. A segunda parte desse pacto é o retorno que esse dinheiro tem em benefícios comuns à sociedade: asfalto, sinalização, hospitais, segurança pública, saúde, educação e tudo o mais que esse dinheiro possa pagar sob esses princípios.

Falar sobre o trânsito e a violência local também não muda a realidade a priori mas cria um espectro de opinião pública muito mais forte e efetivo nas mudanças cotidianas. Cobrar (e é preciso saber cobrar) forçará (é o que se espera de um reclame, de uma queixa) que o Estado busque soluções ou dê respostas efetivas, independente de quem estiver no poder seja o PSBD, o PT ou quem quer que seja. Um princípio de cidadania que nada tem a ver com a dimensão espetaculosa que a grande mídia incorporou e que os micro influenciadores digitais reproduzem em seus pequenos universos, influenciados, de fato, por quem agenda suas pautas: a grande mídia corporativa.

Um pouco mais de humildade em nossos espectros de influência pode de repente ampliar os resultados efetivos sobre a realidade próxima. É o que penso. Continuo não tendo tempo para textões, mas sou obrigado a escrever mais este. Sinto que devo escrever mais alguns sobre coisas bem próximas. Assunto não falta. Se eu sobrevivi até aqui. Estaria forçando a barra se me arriscar mais um pouco apontando falhas em nosso sistema de segurança pública? Não sei. O que você acham?

Ah, quase ia esquecendo: no mesmo dia do assalto, a Secretaria de Mobilidade Urbana de Belém (Semob) guinchou meu carro ao lado de um shopping, onde fui comprar um celular novo, em uma rua de sinalização precaríssima, onde sequer havia faixa amarela (ou de qualquer cor) ao lado da pista. Mas na porta da Divisão de Repressão a Furtos e Roubos (DRFR) e da Divisão de Repressão e Combate ao Crime Organizado (DRCO) da Polícia Civil os carros continuam estacionados sobre a calçada e sobre a ciclovia. 

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

A vida social por um fio: o empreendedorismo criminal


Aconteceu essa manhã. Quando dobrei na Passagem 3 de Outubro, saindo da Dr. Freitas, voltando da minha caminhada matinal, a moto parou a meu lado. A mão do carona foi direto para a cintura, bem na direção do meu olhar. Sacou a arma enquanto descia do veículo e mandou eu “ficar na minha”. O impulso de um milésimo de segundo me fez procurar um rota de fuga no mesmo instante em que a moto parou e vi a cena. Já sabia que era um assalto. Mas ao ver que eu titubeava, o bandido reforçou: “deita no chão! Eu vou te matar”. Enquanto aproximava a arma da minha cabeça, que começava a me preparar psicologicamente para morrer, ele continuou: “deixa ver se tu não é policial.” Eu estava ajoelhado, olhando para o chão. Depois de me revistar e ver que não tinha mais nada além do celular, ele pegou o aparelho, montou na moto e foi embora. Um dos donos do restaurante popular em cuja frente ocorreu a cena, saiu logo depois e me olhou com aquele ar misto de pena e solidariedade. “Impressionante, rapaz, como esses caras humilham a gente”, disse ele.

Divisão de Repressão a Roubos e Furtos, na Sacramenta, Belém-PA
Cheguei em casa, poucos metros adiante, e vi que o aparelho ainda estava ligado porque o whatsapp web (recurso que permite mandar e enviar mensagens pelo computador conectado ao aplicativo) estava ligado. Por uma hora ainda pude entrar em contato com as pessoas que eu conversava para alertá-las sobre o assalto. Achei que eles poderiam estar monitorando meus contatos, mas acabei pensando mesmo é que eles desligaram o aparelho somente depois de terminar a “ronda” matinal.

Já fui assaltado muitas vezes. Morando na periferia de Belém, já presenciei cenas que nunca ousei relatar no Facebook (não é lugar de expor suas fragilidades, não é mesmo?) mas segui em frente, cuidando de mim e dos meus. Mas juro que naquele momento em que me ajoelhei, eu me preparei para morrer. Quando você convive com a violência, você acaba se preparando para situações como essa. Depois que você evita certos lugares e certas práticas, em certos horários etc etc; e, ainda assim, coisas como essa acontecem às 7h30 da manhã, em via pública, diante das pessoas, você percebe que além desses cuidados (para evitar a violência) você também tem que estar preparado para morrer. A morte torna-se banal e não é para o outro é para você inclusive.

Ok. Mas você não morreu! Você dá graças a Deus por isso, mas também lhe convém continuar na vida tentando achar novas soluções para um problema crescente, presente, vivo. Ou vamos desistir de viver. Não! Vamos morrer lutando, tentando entender.

Hoje em dia odeio textão de facebook. Não porque não goste de ler. Acho que, na maior parte das vezes, é hipocrisia, falta do que fazer e não dá em nada mesmo. Fazia. Parei. Até mesmo meu blog está subutilizado pelo descrédito em quem me ensinou a escrever e analisar fatos cotidianos. Escrevo projetos, cartas, esboços de livros e pesquisas que, acredito, possam mudar de fato a minha vida e a vida das pessoas que amo. Mas a gente não pode passar por uma experiência dessas sem refletir e sem compartilhar com um grupo maior de pessoas, urgentemente, porque isso é o nosso cotidiano. O nosso lugar do comum. O espaço da nossa convivência.

Quando fui assaltado há dois anos na Praça Dorothy Stang, à noite, vestindo roupa social, em companhia de uma namorada, me disseram que eu não devia estar ali. Sei que não é justo dizer que a culpa é da vítima, afirmar que devem existir lugares públicos na cidade que você não deve frequentar. Não aceito essa proposição. Paguei o preço de arriscar viver em sociedade, encarando uma população ainda mais pobre que eu no nosso lugar comum. Mas me rendi aos fatos e às circunstâncias. Sei que a vida real exige cuidados práticos. Fui assaltado ao lado de um PM Box. Nunca mais dei esse “mole”. Meu novo celular durou quase dois anos sem ser roubado. Um recorde.

 Mas, entre todas as outras experiências que vivi vendo a violência da periferia de Belém, nenhuma me deu tanto medo quanto esta última. Como eu disse, a convivência com a violência lhe cria uma casca. Vida cotidiana, morte cotidiana. Sempre foi pior e mais revoltante para mim a violência institucional de agentes públicos, de colegas de profissão e trabalho, de pessoas amadas que lhe traem não apenas a confiança, mas te violentam mesmo (escrevamos isso com muito cuidado e deixemos em suspenso, por enquanto). O que quero dizer é que não dá para ficar escrevendo textão sobre corrupção do congresso ou do executivo, é preciso analisar a degradação cotidiana, que está ao nosso lado, dentro de casa, no trabalho, na nossa rua, dentro de nós. Ou você acha que chegamos a esse ponto no Brasil de hoje graças aos “outros” e não graças a um conjunto de valores comuns? “Eles” e “nós”. Certo. Entendo. Mas por que falamos “deles” lá e não falamos deles aqui?

Ok, estamos falando da bandidagem, daqueles que não têm jeito de serem considerados “comuns” a quem é cidadão “de bem” (observem atentamente estas aspas) e vive honestamente de seu trabalho. Você, por um momento, quando tenta cumprir suas obrigações junto ao Estado, pagar seus impostos, suas taxas, suas multas, mesmo vendo blitzen diárias no trânsito e vendo os órgãos arrecadando uma dinheirama sem que isso se reverta em absolutamente nada para o cidadão “de bem”, perde o controle, revolta-se. Como não se revoltar? E como ser tão passivo?! De um lado a bandidagem te humilhando e te roubando, de outro lado o poder público te arrochando os bolsos, e te humilhando também. Por um momento você entende perfeitamente os seguidores do Bolsonaro, que sabe como poucos catalisar essa revolta “comum”.

Mas, novamente, vamos tentar refletir. Pense em dois homens brancos talvez entre 25 e 35 anos, em plena idade produtiva, portanto, dirigindo uma moto às 7h da manhã, procurando um “trouxa” como eu que decidiu sair para caminhar de manhã levando o celular na mão. Veja bem, são homens brancos, de porte físico, de fala articulada. Aquele é o “trabalho” deles. Se eles não passaram a noite “cheirados” e decidiram “meter o bicho” para descolar um troco e manter a farra no dia seguinte, eles seriam outra coisa. Que coisa? Essa primeira análise é a análise, penso eu, que a classe média “bolsonariana” faria a princípio. A análise do “pobre preto e desfavorecido”, que seria a análise da classe média autodenominada “de esquerda” já caiu por terra no início desse relato.

Quem seriam essas pessoas, então? Integrantes da milícia armada que atua impune nas ruas de Belém? A interrogação que me fizeram sobre eu ser policial enfraquece essa versão. O revólver usado no roubo também. Era um 38 velho. Já vi a milícia atuando. São pessoas que assumem postura de atiradores profissionais quando correm armados. Eu vi essa cena na rua de noite com mais quatro testemunhas dentro do carro. Eram homens em idade produtiva de classe média. Sim, com a coragem de ir para a rua roubar e talvez matar para garantir um padrão de vida, um “sustento” qualquer que seja ele. Pela minha experiência (além de ter sido assaltado muitas vezes, de conviver no mesmo espaço que marginais de diferentes classes sociais, eu fui repórter, fiz até curso de detive e cobri a polícia por um tempo), eram pessoas de classe média e não estavam drogadas. São bandidos. Mas, um tipo entre tantos tipos de bandidos a solta.

Apesar do medo de morrer na hora em que o assaltante disse que me mataria, pude constatar (estando vivo agora) que eles, enfim, não me matariam mesmo. Ao menos não me matariam se eu não tivesse uma arma. Depois do susto parece o óbvio ululante, mas me diz que foram mesmo é oportunistas, aproveitaram meu descuido e que agiram de forma consciente, em uma área que aparentava segurança para a ação. Uma ação planejada. Talvez tivessem me seguido por uma ou mais quadras antes de agir.

Você fica pensando nessas pessoas acordando cedo, se arrumando e indo para a rua roubar às 7h da manhã quando o cidadão sai para o trabalho ou volta de sua caminhada matinal. Quando você pensa neles como pessoas comuns, você os imagina planejando a ação e circulando com o celular ligado, do jeito que foi tomado da vítima, por mais uma hora, enquanto fazem outras vítimas. Talvez eles tivessem até uma meta de “arrecadação”. Digamos que eles roubem 10 celulares por semana. Digamos que consigam vender estes 10 celulares por 300 reais. Faturam 3.000 reais em uma semana. Algo melhor do que viver sem renda nenhuma em situação humilhante diante da roubalheira nacional. São empreendedores do roubo! Fico imaginando essas pessoas discutindo a votação no senado sobre a permanência do senador Aécio Neves ou o julgamento de Lula. Some isso a todas as notícias de roubo e ações violentas que ocorrem no país e você tem um quadro que causa pânico e cegueira social nas pessoas comuns, mas onde é claro o sentido de degradação generalizado para quem tentar encontrar soluções fáceis. Como os “bolsonarianos”. A mim, fica claro que temos que dar respostas no mundo da vida, na mudança e reorganização da sociedade. Quem sai de casa para roubar como se fosse um trabalho, está sujeito a matar e morrer. A sociedade também estará preparada para isso, como eu me preparei para morrer. Ontem mesmo um vídeo no whatsapp mostrava uma parte da população agredindo um bandido dentro de uma casa em que ele entrou. Isso porque a essas pessoas fica cada vez mais claro que não há justiça senão pelas próprias mãos. Hão de se organizar também como em milícias, quem sabe?

        A mim, resta decidir se presto queixa na polícia ou não. Afinal, fui assaltado a pouco mais de 100 metros da Divisão de Repressão a Furtos e Roubos (DRFR) da Polícia Civil, onde, como se pode ver na foto, carros e mais carros se acumulam sobre a calçada e a ciclovia sem que os colegas de blitzen do Detran façam qualquer coisa. A certeza da impunidade é um incentivo ao empreendedorismo criminal emergente.  
         
         Quanto à nossa vida, preparamo-nos para morrer pensando que é o único destino certo. Vida cotidiana, morte cotidiana. O foda mesmo é pensar no fim da vida social como um ambiente em que deve florescer aquilo que aprendemos chamar de “humanidade”.