Belém
está insuportável. Mas é preciso encarar os fatos e analisar a situação para encontrar saídas.
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Reprodução do momento em que Daniel cai ao chão sob a mira de João |
Certamente, muitos de vocês viram o vídeo do
assaltante que acertou a cabeça de um jovem de 19 anos em pleno bairro nobre da
cidade de Belém, à luz do dia. Mas teve gente que preferiu não ver. A imprensa
não mostrou tudo porque são cenas fortes e o manual politicamente correto, a
autocensura diz que é melhor não mostrar. Mas eu vi. E muita gente viu. Como
muitas pessoas recebi em um grupo de whatsapp, esse aplicativo que juntamente
com outras redes sociais tem ajudado a destruir com a moral da imprensa. Com
raras exceções, incluindo aqueles veículos que sabem usar a ferramenta.
Este também não foi o único vídeo de
violência urbana nessa semana circulando em Belém. Participo de um grupo onde
realizo algumas pesquisas. Recebi na mesma semana um vídeo de um homem sendo
executado em uma mesa de lanches, na rua, próximo à Casa de Shows Karibe, que
fica localizada na Rod. Augusto Montenegro. Mas este vídeo não teve a mesma
repercussão que o vídeo em que Daniel é atingido por João.
Muitos jornalistas defendem que a mídia não
deve publicar cenas de violência e que o noticiário policial é ultrapassado e
não contribui para a diminuição dessa violência, apenas para a sua difusão. Isso
é coerente apenas em parte. Digo de uma análise fenomenológica (baseada na
minha experiência como morador da periferia, como vítima da violência, como
jornalista, como pesquisador em comunicação e estudioso dos processos de
sociabilidade e comunicabilidade) que é preciso ter cuidado com as máximas
morais do politicamente correto defendidas por muitos jornalistas ditos progressistas
hoje em dia. É preciso muito cuidado com as armadilhas morais do pensamento.
A
verdade é que não existe um motivo real, na atualidade e por si só, para
impedir que certas cenas de violência sejam divulgadas e analisadas em conjunto
com a sociedade. O uso sensacionalista dessas imagens nos tem privado da
crítica séria em cima de fatos reais que as imagens mostram. Precisamos
restringir e alertar sobre o impacto de tais cenas a pessoas com problemas e
principalmente com crianças. Em muitos casos, realmente, o noticiário
jornalístico deturpa a formação das crianças, e nem sempre é por causa da
violência mostrada. Mas isso é outra história. Gostaria de escrever um artigo
científico sobre o assunto e o farei, mas não vou esperar um ano para que as
pessoas possam ter acesso à minha análise. Farei uma nota de ressalva ao final
deste texto aos professores e pesquisadores.
Dito
isto, sigo minha reflexão crítica: Um vídeo em si não nos dá muita visão sobre
o que é o problema da violência em Belém hoje. Fica a ideia de que há apenas um
caos incompreensível e homogêneo. Mas a análise do noticiário cotidiano e,
principalmente, a análise dos vídeos que são gerados espontaneamente pela
população e viralizados pelas redes sociais, em conjunto com o conhecimento da
nossa vivência e conhecimentos críticos, testados, pode nos dizer muito mais do
que a imprensa hoje nos diz sobre a sociologia da violência em Belém.
Mas
isso só poderá ser feito se tivermos um mínimo de formação sociológica e não
ficarmos presos aos fundamentos jornalísticos que ainda hoje são pregados em
algumas universidades.
Vou
analisar os dois vídeos sob o olhar da minha experiência de jornalista, de
cidadão, de morador da periferia, de pessoa que foi assaltada muitas vezes, em
uma perspectiva fenomenológica e psicanalítica (além de ter estudado e
pesquisado a fenomenologia também fiz cinco anos de psicanálise e estudei nesse
período o tema para contrapor as proposições do meu psicoterapeuta. Eram
grandes embates).
Vou
começar por descrever os vídeos.
Vídeo
01
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Momento da execução na madrugada de domingo, 5, na Rod. A. Montenegro
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Descrição:
Um vídeo de câmera de segurança. É madrugada, está escuro. Um grupo de pessoas
reunido em uma mesa em frente a um carro de lanche. O atirador surge na tela
pela lateral, contorna o grupo de pessoas localizado em frente ao lanche,
reconhece a vítima na mesa ao lado do carrinho de lanches, saca a arma e vai
pra cima da vítima com o braço estendido em sua direção, olhar fixo, atira
quatro ou cinco vezes. Nas duas últimas chega perto o suficiente para acertar a
cabeça. As pessoas se espalham e depois de concluir o serviço ele sai, sem
muito alarde. Não é possível ver a vítima. O vídeo acaba.
Considerações
sobre o vídeo e o fato filmado:
1
- A atirador é forte, branco e veste
camisa, calça e sapatos. Não era um assaltante qualquer. Era treinado, atira
com o braço estendido e olha o tempo todo para o alvo. Tem postura de atirador
profissional. No Brasil, apenas policiais e agentes de segurança licenciados
podem treinar essa postura, a não ser traficantes e criminosos muito equipados
e que possam ter tempo e local seguro para treinar com orientação especializada.
Como terroristas que foram treinados por exércitos. Não foi latrocínio, foi execução.
Não sabemos as motivações de quem mata e é pouco provável de encontrar indícios
disso pelo vídeo.
2
- O vídeo foi gravado na madrugada e na
periferia. Sua repercussão não foi tão grande quando o vídeo que vou analisar
em seguida porque o fato é corriqueiro nessas áreas. Procurei nos jornais
online e não vi. Talvez tenha saído apenas o relato no noticiário policial. A
polícia não apresentou culpado, ele não foi identificado. A vítima está morta e
ninguém sabe quem é. Mas não é da alta sociedade nem de classe média,
certamente.
Video
02
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O momento em que a vítima dá as costas ao assaltante, antes de correr
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Descrição:
um jovem negro segue pela calçada, para na esquina e aborda outro jovem. Põem a
mão cintura em postura ameaçadora mas não saca a arma. O jovem que está sentado
se levanta, contorna o rapaz, dá as costas para ele e sai correndo atravessando
a rua ao mesmo tempo em que o sinal abre e os carros avançam em sua direção. O
jovem negro saca a arma e o segue por dois passos e então mira de pernas
abertas e braços estendidos. Depois de mirar ele atira sem virar o rosto até
que o garoto caia. Atingi a cabeça do
rapaz enquanto ele está no ar, no contrapé. Ele cai no meio da pista e cara no
chão. O atirador foge. Primeiro corre para uma esquina depois volta e segue
pela rua pelo mesmo ligar em que veio.
Análise
do fato filmado:
1
- O atirador é negro, jovem, magro,
veste chinelo, bermuda e camiseta. Sua ação não indica execução, ele não chega
atirando, tenta roubar e o assalto é frustrado. Não é um assaltante experiente.
Pois se fosse teria sacado a arma logo, apontando-a para o outro garoto. Isso
evitaria que ele fugisse. Mas o outro garoto o afrontou, de certa forma, talvez
não tivesse se sentido tão ameaçado, talvez duvidasse que o outro rapaz tivesse
mesmo uma arma ou que fosse capaz de atirar. Em poucos segundos cada um deles
tem que tomar uma decisão. O rapaz negro reage, frustrado, sabe que perdeu a
vítima quando ela corre, frustrado e com raiva se vinga do garoto que não
aceitou ser roubado, atirou nele e fugiu da cena sem levar nada. Houve um
enfrentamento, mesmo fugindo, o garoto branco não aceitou a condição de
assaltado. Talvez fosse apegado aos seus bens materiais, talvez achasse que não
seria roubado por um jovem negro. O jovem negro talvez não tivesse a intenção
inicial de matar, mas se sentiu contrariado e perdeu o controle. Quis dar uma
resposta à altura.
2
- O fato ocorreu no centro da cidade, à
luz do dia. Em pouco tempo a repercussão do caso foi capaz de identificar a
vítima e também o atirador. A vítima se chama Daniel e seu pai faz parte de um
grupo de whatsapp chamado “estrelas do tênis”, portanto é um garoto de classe
média. No dia seguinte a polícia apresentou o negro assaltante na seccional do Comércio. O caso repercute até agora.
Vamos
agora a uma análise geral, com base em nossas percepções empíricas, no senso
comum mas introduzindo conhecimentos críticos. A violência impera em Belém. No
centro e na periferia, diria esse senso comum. É tudo a mesma coisa. Mas é
muito menos comum isso acontecer no centro. Não é tudo a mesma coisa. O fato
causou revolta e espanto por causa disso, mobilizou a opinião pública classe
média da cidade. É verdade que assaltos acontecem com certa frequência no
centro. Mas não era tão comum. Agora o fato de ser filmado deu repercussão
maior, mas mesmo se não tivesse sido filmado o caso teria chamado muita atenção
porque foi à luz do dia, porque foi brutal, escancarado e porque vitimou um
jovem branco de classe media.
Por
causa do vídeo, porém, o caso do garoto ganhou as redes sociais e continua
repercutindo inclusive fora do estado. À turma do “olho por olho, dente por
dente”, não quero defender o assaltante, mas a análise social é clara, brancos
armados, treinados estão executando pessoas na periferia a qualquer momento. Eu
fui assaltado por dois homens brancos. Eles estão invadindo a periferia para
roubar. O garoto negro como mostraram os jornais veio do interior, morava no
Barreiro, bairro de periferia, vizinho onde moro. Aqui há pouco tinha uma lei
imposta por meio de pichações em muros e supostamente pelo Comando Vermelho: “é
proibido roubar na comunidade”.
Por
isso, meus vizinhos falam que os assaltantes vêm de outros lugares para roubar
aqui. Os negros pobres também estão
saindo da periferia para assaltar no centro da cidade. Há uma guerra, uma
guerra social que descamba para a violência, processos de higienização e
revolta das classes subalternas. O fato de assaltantes estarem entrando em
colégios de classe média baixa, com pouca segurança para assaltar turmas
inteiras, mostra que há de certa forma um revanchismo de classe mal direcionado.
O jovem negro de prenome João, tem apenas 18 anos, veio do interior e teria
dito para a tia que roubaria para comprar roupas novas. Ansiava, portanto, um
padrão de consumo. Um padrão que ele não tem e que quem tem um mínimo de
condições hoje ostenta. O contraste gera revolta, ressentimento.
O
traço de ressentimento e despreparo no assaltante negro é evidente nos vídeos
como mostrei. Mas também há uma vaidade, ele era inexperiente, mas ao contrário
do que disse aos repórteres, sabia o que estava fazendo quando atirou. Naquela
fração de segundos ele decidiu se impor com uma arma na mão, não como homem. A
ausência familiar não lhe deu referência para isso. Aprendeu nas ruas a ser
iniciado, a mostrar valor pela crueldade.
O
atirador branco da madrugada é profissional, frio e calculista, preparado para
matar. Um profissional que não será preso e nem julgado pela justiça do Pará. O
negro talvez seja preso e solto em seguida. Mas terá os dias contados. Talvez
seja mais um a ser executado na periferia no mês que vem. Não podemos ter a
exata certeza, mas podemos tirar mais algumas conclusões sobre as análises
desses vídeos.
Antes
uma observação: a análise social, sobre classes, raças, preparo ou despreparo
psicológico, frieza, vaidade e ressentimento não é um julgamento moral (ou de
qualquer tipo sobre os envolvidos) é uma constatação com base em indícios
sociais e psicológicos, que orienta a compreensão do fato. Não podemos mais não
querer ver. Precisamos acabar com essa invisibilidade. Precisamos não só ver,
mas discutir, debater e procurar soluções com conhecimento que já existe para
isso.
Seguem,
então, minhas conclusões:
1
- A imprensa não divulgou as imagens, as câmeras oficiais também não. Ambos os
vídeos foram feitos de celular filmando a televisão ou o computador que o gravou
e reproduziu. Portanto, foram vídeos clandestinos, mas reais. Isso mostra que a
atual comunicação sobre a violência não está sendo feita corretamente, ou a
priori, pela imprensa. A imprensa nem sequer tem ajudado a difundir os vídeos
porque os considera feios, indignos etc. Imprensa só divulga nota oficial da
polícia e isso não é sequer jornalismo. Consequentemente, não consegue fazer a
análise necessária para essa compreensão. A imprensa é moralmente cega. E
porque não consegue eventualmente suspender seu julgamento moral não consegue
apontar caminhos e justificá-los aos órgãos competentes, aos quais, quase
sempre estão associados. Quando muito tende a se “indignar”, papel que cabe ao
cidadão comum sem conhecimento para analisar os fatos.
2
- Vê-se por outro lado que a segurança
pública é frágil e o modelo vigente não garante melhoria. Mas que modelo é esse
mesmo? É um modelo que não liga para a justiça social, que não se preocupa com
o mais pobre e faz vistas grossas para uma classe de atiradores que supostamente
faz uma higiene social na periferia. Trabalho chancelado pelo Estado omisso. Que
os pobres negros estejam saindo para cometer esses tipos de crime na zona
central da cidade mostra o fracasso desse modelo claramente. Não há espaços de
socialização, não há programas sociais efetivos, não há punição a quem mata e
quem rouba na periferia. A resposta é rápida para pobres, pretos etc. Desculpem
a turma da bala, do dente por dente, mas este é um caso para discutir não
direitos humanos, mas justiça social, urgentemente.
3
– Enquanto aplica esse modelo de segurança, o governo também extorque o
cidadão, fazendo blitzen a torto e à direita para aumentar a sua arrecadação
sem dar retorno à sociedade. Sem proteção social, ressentido, acuado,
amedrontado e desinformado o cidadão não consegue compreender a sua própria
realidade. Não tem forças para cobrar o próprio estado e descarrega sua raiva,
muitas vezes, nas vítimas. Ou escolhe as suas vítimas: num momento é o policial
que enfrenta o bandido e não pode confiar na justiça, noutro é o assaltante
negro que não teve oportunidade, em alguns casos, o pobre põe a culpa até no
garoto classe média que não aceitou ser roubado e não “soube se portar diante
do assalto”. É cada absurdo que a gente ouve que deprime.
4
- Finalmente, a gente precisa ter
compreensão ampla e fazer alguma coisa
eficaz em mudar essa situação. Eu aceito sugestões e gostaria de trabalhar para
mudar isso.
NOTA: Os professores, pesquisadores e jornalistas estão autorizados a reproduzir o texto ou as ideias aqui expressas desde que citem a fonte. Como disse parte dessas reflexões estarão em um artigo científico a ser encaminhado a uma publicação em breve.