quarta-feira, 15 de março de 2017

Karnal e o maravilhoso mundo encantado das ideias

Intelectual que ganha fama ensinando o básico sobre ética às massas por meio de vídeos no Youtube se mostra em jantar de vinhos finos em companhia de juiz professor que demonstra tendência intelectualmente suspeita. Sua posição de “trânsito” parece coerente, mas é suficiente no mundo de hoje?

Foto de jantar de Leandro Karnal com Sérgio Moro virou meme na Internet

Era sábado de manhã e eu estava no estúdio do grande guitarrista Ziza Padilha para gravar a faixa de Eloi Iglesias no meu disco quando vi pela primeira vez a foto de Leandro Karnal com Sérgio Moro. Na hora a postagem causou espanto nos presentes no estúdio. Não somente porque parecia um escárnio, mas porque o escárnio estava expresso pelo autor da postagem quando falava que aquele fato poderia causar estranhamento em algumas pessoas, afirmando que a vida não é “linear”.

Karnal experimentou um ataque “virulento”, como disse Ricardo Boechat dias depois na rádio, antes de apresentar a coluna semanal do professor de História da USP. O intelectual acabou virando tema das mais diversas análises e teve que se esforçar muito para poder se justificar diante de seu “público”.

Vi Karnal algumas vezes em vídeos que viralizaram na internet discutindo temas como ética e política. Nos poucos vídeos que vi, Karnal parecia defender uma visão progressista um pouco mais a esquerda do pensamento liberal conservador que ganha cada vez mais espaço no Brasil do golpe parlamentar. Curioso com a repercussão da postagem de Karnal, fui “investigar” um pouco mais a fundo seus posicionamentos.

Em um vídeo no youtube ele fala sobre feminismo e não se esforça muito para atender às expetativas das tendências neofeministas extremas, apesar de certo constrangimento. Isso me pareceu pouco popular apesar dos eufemismos que ele empregava. Vi outro vídeo onde Karnal diz que a visão de ter sido golpe ou não ter sido golpe o impeachment de Dilma é uma questão de ponto de vista, já que o processo é sempre um processo político e depende da base de apoio que os presidentes na democracia acabam construindo, ou não.

Noutro vídeo, Karnal afirma que “ser de esquerda” ou “ser de direita” é um modo viciado de pensar, já que coloca as pessoas em “caixinhas”, sendo que as mesmas são complexas. Que ora podemos pensar de acordo as visões liberais ora podemos pensar de acordo com visões progressistas, tidas como “de esquerda”.

De fato, eu pensei: “Karnal já havia dado sinais de que pensa livre e pode ser flexível”. Sim, é óbvio que o intelectual que não se prende a uma ideologia, principalmente ideologias partidárias, estará aberto a dialogar com todos os lados. Isto estava intrínseco em todas as suas falas e a grande massa que o tomou por um liberal de esquerda ignorou tais sinais.

Nas justificativas de Leandro Karnal e Ricardo Boechat, no citado programa de rádio, ambos parecem defender uma posição intelectual corporativista. Essa defesa é mais ou menos assim: os homens de mídia, homens públicos, têm direito a ter opinião, a defender suas visões e ter o comportamento que acham coerente; e o fascismo expressionista das redes sociais é extremante injusto com quem se arrisca a dizer o que os outros não querem ouvir.

Sim, esta é uma defesa absolutamente coerente. Mas é preciso ressaltar outro aspecto em defesa do grande público e das grandes audiências que se sentiram traídas por ele. A partir de sua postagem, Karnal foi execrado pelos esquerdistas e ponderado pelos direitistas (o que antes não era comum). De toda forma, ele tornou-se transitável entre os dois lados. O que pode ser considerado uma virtude em um Brasil dividido como o de hoje. Dilma Roussef assumiu seu segundo mandato, antes do impeachment, pregando que era necessário construir pontes entre esses dois “Brasis”. Acabou por nos deixar a pinguela de Michel Temer. Pinguela necessária segundo a visão de Fernando Henrique Cardoso.

Tudo muito coerente e virtuoso. Em tese. E é esse o grande problema. Os intelectuais, assim como os políticos, acabam por defender sempre um ponto de vista corporativista. O que uniu Karnal a Sérgio Moro, pelo que consta da minha “investigação” nas redes sociais, é uma especialização da PUC do Rio Grande Sul sobre economia financeira com grandes nomes midiáticos do “pensamento Brasileiro” contemporâneo, incluindo Karnal, Moro e Clovis de Barros Filho, outro professor que faz sucesso no mundo virtual com suas contundentes teorias sobre a vida cotidiana do trabalho, da ética, da comunicação etc.

Imagino que não deva ser barato ter esses três, entre outras figuras ilustres, como mestres em um curso de especialização da PUC. É justo pagar por um conhecimento tão rico. Cada um ali está fazendo o seu papel. O problema é que o mundo de hoje preserva poucas zonas de conforto. E o mundo das ideias tornou-se uma zona extremamente confortável para os intelectuais em um mundo cada vez mais perigoso para a gente comum.

Karnal e outros intelectuais ganham notoriedade e fama ensinando o elementar (para quem não estuda ou estuda pouco) para as massas pouco letradas e aproveitam a fama apara encher os bolsos. É justo. As grandes massas devem achar que se ganha a vida como? Mas esperam que ganhar a vida com o pensamento exija coerência.  E mesmo inconscientemente anseiam por um conhecimento mais profundo, que efetivamente mude as suas vidas. Mas o que de fato esses intelectuais ensinam sobre a vida prática do Brasil de hoje? O que fazem para mudar uma realidade que eles mesmos apontam viciada?

Alimentam (e se alimentam, de certa forma) da ignorância alheia para beber vinhos finos na companhia de quem interfere drasticamente (e, por vezes, parcialmente também) na realidade das massas brasileiras. E esperam sair ilesos. Ou melhor, esperam sair ovacionados.

Sem dúvida, a contribuição intelectual para a compreensão política e a vivência brasileira hoje é uma grande contribuição. Mas a mudança não se dá apenas por meio da compreensão, mas da ação. Nesse caso, o que se espera às vezes mesmo inconscientemente das massas é que os letrados ajam com coerência e efetividade. Não com sarcasmo ou isenção absoluta. Nesse novo mundo até Hermes perde seus privilégios.

Para saber mais:

Karnal e Moro em Especialização da PUC:

Conversa com Boechat:

Sobre machismo na filosofia:

Sobre golpe:

Sobre esquerda x direita:

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