Grandes questões da humanidade estão no nosso cotidiano.
Demorei para escrever sobre isso porque fiquei atordoado
alguns dias. Afinal, não é todo dia que
você acorda de madrugada e tem um visitante inesperado dentro do seu quarto.
Fantasmas me assombraram muitas vezes, mas eu aprendi a lidar com eles. Quando
recebi a visita inesperada de um assaltante, porém, foi difícil lidar com isso.
Vou contar a história toda porque ainda não sei o que dizer a respeito. Quem
sabe a gente consegue, juntos, tirar uma lição que seja útil, sobre violência,
sociabilidade e, quem sabe, políticas e práticas de segurança.
Foi assim: o dia tinha sido longo, era uma segunda-feira,
dia 7 de novembro, e teve ensaio do Fecant, o Festival da Canção da
Transamazônica, onde eu classificara uma música minha e do meu amigo Augusto
Hijo, que também é meu vizinho. Ensaiamos “Ao Pé do Ouvido” com a banda base na
sala do Teatro Margarida Schivasappa e saímos para tomar uma cerveja com o jornalista
Edyr Gaia, que também classificou uma música no festival. Meu amigo e
contrabaixista Moriel Prado foi junto. Tocamos violão com a rapaziada do Bar do Gernamo, lá no
Horto, depois fomos pegar a filha do Moriel no aeroporto.
Comemos um sanduíche na Cidade Velha e, depois, eu voltei para a
Sacramenta sozinho. Já passava das
3h00 da madruga quando a última conversa no celular se encerrou. Apaguei com a
luz acessa e a janela de correr destravada. Foram poucos minutos de um cochilo.
Acho que acordei com a janela abrindo. Sonolento, levantei e tive tempo de ver
o pé do bandido pulando para fora do meu quarto. A janela aberta, minha câmera,
notebook e celular intactos na mesa em frente à cama, onde é também meu home
office. Isso me leva a crer que talvez não tenha dado tempo dele entrar no
quarto. Talvez estivesse pendurado na janela.
Era um pé preto, de sola branca, amarelada e suja. Não posso
dizer o quão preto era. Na hora, fiquei aturdido, sem saber se sonhava ou se estava
realmente vivendo aquele pesadelo. Durou uma fração de segundo a minha
perplexidade. No instante seguinte eu estava na janela, gritando “pega ladrão”.
Em seguida chamei um palavrão com toda a força dos meus pulmões. Acordei os
vizinhos e fiquei rouco dois dias. Acordar os vizinhos era importante. Mais
importante do que chamar a polícia. Eu sabia que todos iam ver ele quando ele
saísse correndo pelos quintais ou pela rua. Sabia que ele tinha sido ousado
demais e eu estava muito, muito puto (essa é a palavra!) com isso.
Minha casa, ou melhor, a casa da minha mãe, não tem cerca
elétrica, não tem muro alto e nem tem grades nas janelas. No máximo tem uns
cacos de vidro no muro, mas já estão bem gastos. Eu mesmo já pulei o muro
algumas vezes, por esquecer a chave. Projetada pelo meu irmão engenheiro, é uma
casa diferente da casa dos vizinhos da Sacramenta. Não é colada nas casas do
lado e tem corredores de ventilação. Não é a primeira vez que ladrão passa por
lá. Normalmente, estão fugindo. Um dia, depois de chegar do trabalho, de
cuecas, sentado no sofá em frente à televisão, ouvi um barulho. Abri a
porta e tinha um policial à paisana, com uma arma em punho, bem na minha porta,
dentro do terreno junto com outros dois policiais militares. Estava procurando um vizinho que fugiu pelo quintal depois
que a polícia e o dono de uma moto rastrearam o veículo até a casa ao lado, onde a
proprietária aluga quitinetes.
Situações como essa talvez tenham me deixado alerta, capaz
de reagir mais rapidamente ao assombro noturno do bandido no meu quarto. No
entanto, nenhum reflexo treinado seria capaz de evitar o pior se um assaltante
armado entrasse em casa ou se uma luta corporal fosse travada ali. Não sei o
que faria e essas possibilidades me assombraram durante muitas horas depois do
evento. A adrenalina subiu. A dona da casa não estava, fora cuidar da minha
irmã acidentada no Rio Grande do Sul. Minha outra irmã, Temis, estava em casa,
restabelecendo-se de uma operação no joelho. Ela e meu sobrinho Paulo acordaram
com o grito. Na confusão que se seguiu, Temis derrubou meu violão no chão e o
quebrou, sem querer. Foi o único prejuízo material. Demoramos a dormir de novo.
No dia seguinte, tinha o sorteio do tema de uma prova didática para professor substituto na UFPA. A prova seria repetida graças a
um recurso que interpus depois da primeira prova meses antes. Ou seja, já havia
tensão suficiente no ar. Mesmo assim, fui visitar meu amigo vizinho Hijo logo
cedo. Contei a novidade da madrugada.
Enquanto eu estou contando para ele a situação, outro
vizinho aparece. Conto a história para ele também e ele diz algo assim: “Outro
dia, um cara entrou no quintal da casa da minha sobra, e ela suspeitou do
Neném. Não vou dizer que é ele, mas fica de olho.”
O Neném é um cara de uns 50 anos que mora perto e faz
serviços gerais. Carrega um carro de mão de tração humana e vive se oferecendo
para limpar quintais e outros serviços. Já fez serviços em casa. Minha mãe,
como quase toda a família, tem essa condescendência católica que ajuda por o
bandido dentro de casa. Já havia notado que ele roubara algo de casa em outra
ocasião e tinha pedido que ela não o chamasse para fazer serviços novamente na
residência.
Com o tempo, conversando com ele, eu mesmo baixei a guarda.
Quando você mora na periferia você não pode ser melhor que os outros. Tem que
fazer parte da comunidade. A crise intensifica tudo. Poucas vezes, porém,
intensifica a solidariedade. A falta de grana faz todo mundo arriscar coisas
novas. E você acaba virando refém de certas situações.
Perdas e ganhos: Perdi o violão e ganhei um chinelo velho |
Mas será que tinha sido o Neném mesmo?
Fui comprar pão e voltei para casa. Antes de sair para a universidade mais uma conversa com outro vizinho. Enquanto conversávamos junto à porta de casa, Gilberto, dono da mercearia ao lado, dá o alerta: ninguém tinha notado que havia um par de chinelos postado cuidadosamente ao lado do portão de casa. O ladrão descalço deixara o chinelo para entrar em casa, e na correria o deixou para trás. São as Havaianas sujas que você vê nesse post. Mais uma pista do ladrão caseiro.
Fui comprar pão e voltei para casa. Antes de sair para a universidade mais uma conversa com outro vizinho. Enquanto conversávamos junto à porta de casa, Gilberto, dono da mercearia ao lado, dá o alerta: ninguém tinha notado que havia um par de chinelos postado cuidadosamente ao lado do portão de casa. O ladrão descalço deixara o chinelo para entrar em casa, e na correria o deixou para trás. São as Havaianas sujas que você vê nesse post. Mais uma pista do ladrão caseiro.
Ao sair decidi olhar para os pés dos “malacos” que rondam
pela Mucajá. O vizinho também dá outra
dica: a câmera da Facepa (uma fábrica!), bem em frente de casa, pode ter registrado a entrada
do bandido. Mas, assim como não quis chamar a polícia na hora (não serve para
nada nesses casos, já tivemos outras experiências), também não fiz questão de
ir atrás. Estava apenas querendo saber se era o Neném ou não.
Antes ele do que um latrocida, ou sabe-se lá o quê. Saí de
casa para ir à universidade, sempre olhando para os pés dos transeuntes.
Mais a frente, junto ao mercadinho, estava o Neném com seu carro de puxar, para
o qual eu mesmo doei pneus velhos. Os braços magros, a pele escura e queimada de
sol. Estava de costas para mim. Olhei direto para seus pés e... advinhem?
Estava calçando tênis! Nunca vi o Neném
calçando tênis antes. Vai ver só tinha aquele par de chinelos velhos.
Passei por ele sem olhar e fiquei esperando ele falar comigo,
pois ele sempre me chama para pedir trocados ou oferecer novamente seus
serviços. Neném não deu uma palavra.
O Neném sumiu depois disso. Já tem vários dias.
Não sei exatamente que lição tirar disso. Só sei que aqui,
no cotidiano da periferia, no mundo real, é assim: cada dia é uma luta a fim de
garantir direitos, a fim de sobreviver e de preservar o pouco que a gente ganha.
Tentamos ser solidários e sociáveis com todos, mas isso não nos livra desse
tipo de situação. Colaboro com o centro comunitário e desde o ano passado
realizo a festa do meu aniversário na rua, com amigos músicos tocando para a
comunidade. O Bow, o peixeiro da esquina, me avisou: “Tá chegando a hora de
fazer aquele brincadeira, né?!”. Seria mais um alerta? Talvez eu não esteja
sendo generoso como antes.
Aqui é o lugar onde a gente não despreza o bandido. E existem
muitos tipos de bandidos. Tem aquele que é de casa, de quem você se defende no
grito e de quem você não leva tiro ou facada. Mas a gente nunca sabe. Se ele é
de casa, vamos cobrar também e denunciar. Ladrão que rouba vizinho, na comunidade?!
Em outros lugares e tempos teria um código de ética para isso. Mas a ética anda
em baixa em lugares muito mais nobres, que dirá na periferia?!
Roubar?! Muita gente te rouba por aí e ainda finge que é teu
amigo, quem sabe até o gestor, o prefeito, governador, presidente... o vizinho.
Como dizem, “a ocasião faz o ladrão”. Aqui, ele é de casa. Estou pensando como
vou devolver esses chinelos para o Neném e dar a ele a lição que ele merece.
Mas, como já disse, não sei que lição é essa.
O que vocês acham?
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