sábado, 26 de novembro de 2016

O grande repórter e as limitações da reportagem



Como Caco Barcellos nos mostrou, mais do que sobre a crise do “funcionalismo público” no Brasil, sobre a crise da comunicação

Reprodução.

Se você é jornalista, peço que leia esse texto de coração e mente abertos até o final. Acabei de ver o episódio da série Profissão Repórter, conduzido por Caco Barcellos, sobre “a crise do funcionalismo público”. E a impressão que tive, mesmo diante de um excelente trabalho de edição e cobertura jornalística, é que a reportagem se apequenou em vez de se engrandecer. Uma afirmação que contraria, certamente, a opinião da maioria dos colegas que se sensibilizou com a agressão que Barcellos sofreu durante a cobertura dos protestos em frente à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.

Devo dizer, de antemão, que não sou de modo algum a favor desse tipo de violência. Além do mais a liberdade de imprensa deve ser preservada sempre. Mas esses fatos não devem, por sua vez, nos privar do direito de analisar os fatos criticamente, como bons jornalistas que somos. Quando digo que a reportagem se apequenou, tento falar do trabalho do repórter que se tornou grande em seu ambiente urbano, diante dos manifestantes, mas não avançou na relevância crítica dos (complexos, porém, politica e sociologicamente compreensíveis) problemas do país hoje.

Vamos lá, com calma, chegando devagar na questão. Caco Barcellos deu uma grande contribuição ao mostrar a situação desesperadora de alguns servidores públicos e de alguns estados quebrados. É uma situação dramática, sem dúvida. Dada sua grandeza presumida, não poderíamos esperar que Caco Barcellos tornasse a sua agressão um episódio sensacionalista, que girasse em torno exclusivamente do seu direito de reportar o fato. Caco, como todos disseram, e eu concordo, é um grande repórter e estava fazendo seu trabalho bem, como sempre fez. Deu conta de mostrar uma realidade palpável. O elemento primário, ainda que não fácil, do jornalismo.  

Não resta dúvidas que a equipe de Barcellos, seus jovens repórteres, mostrou com grande competência os sinais e os efeitos da crise do funcionalismo público nos estados do Tocantins, do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul. Opa! Mas, calma, crise de quê, mesmo? Crise do funcionalismo público?

Antes mesmo do programa começar, já estamos, editando. Enquanto algumas pessoas estão relativizando a crise, outras estão segmentando a crise. Esse recorte é a base do jornalismo de meia verdade da Rede Globo, que é muito maior do que Caco Barcellos.

Se existe uma crise, ela também é bem maior do que o “funcionalismo público”.  É uma crise que envolve o jornalismo inclusive. Não somente porque estamos perdendo postos de trabalhos. Mas porque o jornalismo tenta reencontrar uma função para a sociedade dentro desse novo panorama, pelo menos no Brasil. A crise é institucional, é política, a crise é da sociedade brasileira.

Caco Barcellos foi um grande repórter e mostrou isso. Isso ficou evidente em seu programa para quem sabe ler e entende a história, a economia e a política do Brasil. Mas ele não deixou isso mais claro para quem não entende isso. Sequer ousou em fazer perguntas como: por que a crise do funcionalismo chegou a esse estado de coisas? Qual o papel das elites nessa crise? Qual o papel da política nela? Pacto federativo? Corrupção sistêmica? Como tudo isso se relaciona nessa crise?

O jovem repórter Manuel Soares se sai muito bem, assim como o próprio Caco Barcellos, no corpo a corpo com os personagens. Mostra que, diferentemente do que pode se abstrair de alguns comentários na internet, o repórter não precisa ser o centro da notícia, mas ele é participante, sim. Mas o jovem aprendiz não se sai tão bem quando entrevista o governador do Rio Grande do Sul. Faz uma pergunta do tipo: “e a situação dessas pobres famílias?” Ora, a questão a tratar com um político é: qual a motivação de tal crise? Qual a solução? A situação das famílias nós já sabemos, graças a uma parte bem feita da reportagem.  E a outra?

Caco, ao dar entrevista ao estudante de ciências sociais que divide o apartamento com o professor de sociologia que ficou desacordado durante o protesto, diz que entende a reação de alguns manifestantes, mas preserva seu direito de trabalhar. Ponderado, diz que a agressão é quase consequência natural do seu trabalho. Vai na mesma linha daquela oração que diz que o direito do trabalhador jornalista não é a mesma coisa do direito do patrão. Sim, Caco está certo. Trabalhador é trabalhador e patrão é patrão.  Mas o trabalho dele é garantir que os trabalhadores e a sociedade entendam a crise e não apenas conheçam a realidade da crise. Até porque o trabalhador vive essa realidade cotidianamente. Estaria, portanto, reportando a uma classe média, privilegiada, que não sofre com a crise? É provável.  

Podemos observar muitas nuances desse novo momento da comunicação. O repórter, e poucos são tão bem articulados e desenvoltos como Barcellos, passa de entrevistador a entrevistado. Ele não deixou de virar notícia, como disseram alguns colegas na rede. Ele apenas atenuou isso em sua edição. Ele deliberadamente se retirou do foco da agressão. O que, em si, facilita as coisas para ele. Em sua edição ele também reforçou os muitos momentos em que alguns manifestantes lhe demonstraram apoio e nos momentos em que ele se mostrou representante dos interesses desses manifestantes. Um jogo de cena comum na arte da edição. Pode ser usado para dizer que o Collor ganhou o debate ou que um manifestante está sendo intransigente.

Talvez seja um direito do repórter, já que a realidade mostrada, nua e crua, também favorece os servidores em sua luta. Mostra para outras audiências, além d a classe média e da classe política, que há motivos reais para a luta, mas o programa não tem a mesma audiência que o Jornal Nacional, por exemplo. E, servidor público, não deixa de ser uma classe média no Brasil. Um público respeitável dentro da audiência da Globo.

É claro que se ele fosse brigar com a Globo para mostrar mais que isso talvez não estivesse lá. E, estando lá, ele pode mostrar os dramas reais causados por uma crise institucional, de cima para baixo, que corrói a sociedade brasileira e penaliza em primeiro lugar os que têm menos, a despeito dos vícios de edição e abordagem. Quem sabe ler pode entender.

“Numa realidade ideal”, como diria Paulo Nogueira do site o Centro do Mundo, a reportagem de Caco Barcellos desmontaria qualquer pacote de maldades em nível nacional, bastando completar o relato pungente dos fatos com uma análise política séria.

Nesse mundo ideal, não precisava ser radical de esquerda para mostrar um pouco mais da profundidade dessa crise. Seria possível mostrar isso com gráficos e infográficos explicando o papel arrecadatório da União e dos estados, mostrar como a corrupção sistêmica, as desigualdades e as políticas elitistas e de contenção preservam os privilégios de quem tem mais e achatam os salários do “funcionalismo público”, paralisando a economia.

Mostrar isso, mesmo sem tomar partido, tornaria evidente um golpe institucional e o papel tirano do governo Temer, entre outras realidades possíveis. Mas isso a Globo não deixaria.

Nesse ponto eu pergunto: a reportagem não pode crescer no entendimento da realidade social e política do Brasil? Precisamos dos especialistas? Seria esse papel exclusivo da sociologia? De que maneira estamos limitando o espaço da reportagem? Seria isso o que certos críticos da profunda crítica jornalística chamam de “perorações sociológicas”. Não. Nada disso confere. O jornalismo deveria crescer como cresce a complexidade dos problemas da nossa sociedade. Não dá mais para explicar a realidade com roteiro de telenovela.

O programa de Caco Barcellos se propõe a ensinar. Não por acaso muitos disseram que ele deu uma aula. Mas que aula é essa? O que estamos ensinando como jornalismo? Na Globo, nas universidades?

Será que estamos fechados em uma posição corporativista, defendendo nosso direito de trabalhar, acima dos interesses da sociedade? É preciso fazer um exercício de transcendência desse jornalismo. Mas não o estamos fazendo a contento, dando o direito à maioria da população de se informar corretamente sobre situações fundamentais para a sua vida em sociedade. Diante do quadro midiático atual, é como se Caco Barcellos estivesse dando esmolas, como os estudantes que foram às ruas pedir dinheiro para completar a renda dos professores. Se essa é a solução, então, a sociedade toda tem que repartir o que tem. Mas isso, como a senhora entrevistada pelo jovem repórter Manuel, as elites não permitem.

Se fizermos esse tipo de concessão daqui a pouco estaremos no comunismo (ironia mode on). E mesmo um repórter de primeira linha, como Caco Barcellos, tem suas limitações. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário